O Alcazar, de Simon Lamouret, acompanha toda a construção de um edifício de luxo na cidade de Bangalore, na Índia. Desde a limpeza do terreno até seu lançamento oficial. Uma realidade que estamos pouco, ou nada, acostumados a ver retratada em histórias em quadrinhos. O que o autor faz é explorar cada pequena interação humana que permeia esse universo e transformar o material em um grande estudo das possibilidades do relacionamento interpessoal.
Inicialmente podemos ser enganados de que a família de Rafik, Muhboob e Salma é o foco da história, afinal os acompanhamos por mais tempo e eles estão presentes do início ao fim da obra. Quando eles se ausentam por quase um terço dela, é necessário repensar essa premissa. Se a hq tem um personagem principal, ele é o edifício que dá nome ao material. As pessoas envolvidas em sua construção são apenas pequenos planetas que orbitam e, de certa forma, dependem do nascimento daquela estrela. Prova disso é como todas as páginas duplas retratam a evolução d’O Alcazar, simples e puramente.
Além da família citada, pedreiros, azulejistas, empreiteiro, arquiteto, proprietário e muitos outros indivíduos que gravitam uma construção são utilizados como peças para retratar uma sociedade absurdamente dicotômica e diversa. Mas como em toda grande galáxia, são os pequenos mistérios os mais interessantes e um dos grandes destaques da publicação se dá nas interações entre cada grupo ali presente. Seja entre os pedreiros e o empreiteiro, arquiteto e proprietário ou até entre os próprios membros da classe operária – que precisa morar na obra pois não possui moradia própria. O convívio dessas pessoas é o que dá a força da hq. Os atritos e situações que surgem dessas relações mostram que a divisão dessa sociedade é sim muito relacionada ao poder aquisitivo, mas também bastante calcada na religiosidade.
Além disso, a história também é muito perspicaz em mostrar em pequenos momentos a perpetuação de um modelo social que é cria direta do capitalismo. Os operários são praticamente obrigados a pular de uma obra para outra, sem a possibilidade de saíram daquela realidade de morar e trabalhar no mesmo lugar. Até para os personagens fora da classe trabalhadora braçal, como o dono da empresa azulejista, Ganesh, essa conservação de qual é o seu ‘local social’ é explicitada durante a festa que o dono do imóvel oferece ao fim da obra.
A arte da hq é bastante encantadora, principalmente quando retrata a construção em si, mas sem dúvida o que salta aos olhos é a colorização com foco quase exclusivo nos tons azuis e laranjas, inclusive nas roupas dos personagens. Isso traz constantemente uma sensação de calor e familiaridade. Nos momentos de tensão e intrigas, a saturação é quase que totalmente retirada, mas a paleta de cores se mantem sempre a mesma.
A construção de um edifício na cidade de Bangalore na Índia parece um tema inusitado demais para ser retratado em uma história em quadrinhos e inicialmente o choque pode ser grande ao ver a total falta de segurança dentro daquele ambiente. Mas O Alcazar consegue ir além do incomum atendo-se ao elemento mais elementar das sociedades e, com a imprevisibilidade do tema, escancara a disparidade de classes existente em países de terceiro mundo e na ciclicidade do trabalho. É por isso que a publicação da Editora Nemo combina tanto com o nosso Brasil atual, além de ser um excelente cartão de visitas para Simon Lamouret, que não havia sido publicado por aqui até então.