CRÍTICA: Soul, Pixar (explicado)

Qual é o seu verdadeiro propósito na Terra? Se lá em 2015 o estúdio nos deu Divertida Mente falando sobre questões de autoconhecimento, a importância de se expressar e saber lidar com emoções e mudanças, com Soul não é diferente, ele aprofunda mais essas questões, levando a outros caminhos que outra animação da Pixar não havia abordado… até agora.

Vou começar já avisando que esse texto terá spoilers para explicações sobre determinados assuntos da animação.

Soul, é a mais nova animação da Pixar que seu lançamento foi afetado pela pandemia do coronavírus (#inferno) e que teve sua data adiada por três vezes: seria 19 de junho, mas foi adiado para 20 de novembro e acabou sendo lançada na plataforma de streaming da Disney+ em 25 de dezembro, justamente no Natal – uma data importante para várias pessoas e não foi a toa que a Disney, uma marca americana, ter lançado nessa data (cof cof, um dos motivos de lançamento foi o fato de os Estados Unidos terem a religião cristã como predominante no país e a palavra Natal ser originada do latim natalis, originada do verbo nascer).

Em Soul, conhecemos Joe Gardner, um professor de música do ensino médio que ganha a grande chance de sua vida, tocar no melhor clube de jazz da cidade. Mas um pequeno passo em falso o leva das ruas de Nova York para um lugar fantástico onde novas almas obtêm suas personalidades, peculiaridades e interesses, antes de irem para a Terra. Determinado a retornar à sua vida, Joe se une a uma alma precoce, chamada 22, que nunca entendeu o apelo da experiência humana. Ao tentar desesperadamente mostrar para 22 o que há de bom em viver, Joe pode descobrir as respostas para algumas das perguntas mais importantes da vida. Dirigida por Pete Docter (Up – Altas Aventuras, Divertida Mente) e co-dirigida por Kemp Powers, produzida por Dana Murray (curta Lou), com trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross e arranjos de Jon Batiste, a animação é de encher os olhos por tudo… e literalmente.

Narrativa

O roteiro feito por Pete Docter, Kemp Powers e Mike Jones traz um enredo mais maduro – não que o filme não possa ser destinado as crianças, ele até pode, mas aqui público principal é o mais velho. Um enredo mais maduro, onde os fundamentos humanos e filosóficos são a principal base do filme, trazendo uma nova perspectiva de visão em nós mesmos com uma auto-reflexão. Quando mencionei Divertida Mente no início desse texto e completei dizendo que Soul é uma extensão do filme, não foi de propósito.

Qual a minha missão aqui? Qual o verdadeiro sentido da minha vida? Para onde eu vou? O que eu estou fazendo, é realmente isso que eu quero? Quem é que nunca se perguntou sobre essas questões em algum momento da vida? Nós vivemos nos perguntando, principalmente quando estamos em momentos fragilizados. E Soul nos entregou de uma forma mais leve, mais didática e mais artística essas questões e outras mais que serão faladas mais adiante. A construção de personagem e a dinâmica entre os dois principais também é maravilhosa: Joe, o professor de música do ensino médio que tem jazz como seu oxigênio e que faz de tudo para conseguir subir nos palcos e 22, uma alma que está há anos no Pré-Vida e não consegue um passe para a Terra, por não ter tido – até então – a faísca da vontade de viver nela. E é por isso que faz da narrativa ser interessante, te colocando por muitas vezes na pele dos personagens através da individualidade de cada um e tendo como plano de fundo a música que traz essas questões filosóficas à tona, não só pela ambição do personagem Joe, mas também o humor presente na personagem 22, na liderança forte de Dorothea Williams, na história de vida do barbeiro Tess, na positividade do Bicho Grilo e assim por diante.

Aliás, a animação como um todo tem várias e várias camadas que nos maiores e nos mínimos detalhes, deixam a narrativa mais rica – e é sobre isso que vamos seguir a partir daqui.

Disney/Pixar/divulgação

Primeiro personagem negro e a presença da cultura preta americana

Soul não é uma animação que fala sobre os questionamentos filosóficos na nossa vida e ter a presença do jazz todo tempo do filme. Soul traz pela primeira vez, o protagonismo de um personagem preto em uma animação da Pixar e de Kemp Powers ser o primeiro co-diretor preto a dirigir uma animação do estúdio. Através de Joe também percebemos que jazz é extremamente importante para a cultura preta americana. Para quem não sabe, jazz é uma manifestação artística que surgiu no final do século XIX, através das canções que os escravos cantavam durante o trabalho em fazendas de algodão, mas foi somente em Nova Orleans que o jazz virou um importante elemento na cultura preta americana, pois através da música de improvisação, que eles tiveram a oportunidade de participar da cultura branca e poder ter oportunidade de empregos – já que na época o racismo era extremamente absurdo. Para uma abordagem mais precisa da cultura preta, além de Kemp Powers estar presente no roteiro, foram chamados vários consultores para o desenvolvimento do filme: funcionários da Pixar, os músicos Herbie Hancock, Terri Lyne Carrington e Jon Batiste, e as estrelas Questlove e Daveed Diggs, além de organizações pretas também.

Trilha Sonora

Trilhas sonoras são um elemento extremamente importante para os filmes e aqui não é diferente. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross da banda Nine Inch Nails é bem diferente, bem mais melancólica, bem profunda e é linda. Ela acompanha os vários momentos de cada personagem (principalmente do Joe) em situações de desespero, agonia, reflexão, tristeza, descobertas e vivência da vida. Você ouvindo a trilha sonora a parte, não vai trazer tanto impacto quando ela é utilizada em conjunto com a animação. Você sente a trilha sonora em você. Indico que vejam o filme com fone também para sentir um “q” a mais. Sobre os arranjos de Jon Batiste com o jazz, não há o que falar sobre algo que já está em perfeita sintonia e é uma das almas do filme e realizada com maestria.

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Estética

Pode não parecer, mas a estética é extremamente importante aqui. Começando pelas cores vibrantes e coloridas de Nova York e passando pelo mundo de nuances suaves do mundo espiritual: Além Vida e Pré-Vida/Escola da Vida. Os sentimentos também são expressos através de nuances magistralmente lindas em várias cenas. Por exemplo, na cena em que Joe está tocando piano e está “sentindo a música”, a representação traz nas nuances em volta do personagem, junto com a cor azul que muitas vezes está associado a tranquilidade. Em outra cena, isso está bem mais evidente: quando Joe está nos palcos com Dorothea e a cada música tocada, um novo sentimento, uma nova sensação é mostrada: uma música calma, cor azul; uma música animada, cor vermelha e uma música mais estilo anos dourados, uma luz amarelada.

O interessante daqui é que utilizam elementos 3D e também 2D em um dinamismo bacana, trazendo os Zés como os seres mais puros do universo.

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“você ficava olhando e ele flutuava lá na frente, tava sendo levado pela música… tava entregue… elevou quem tava lá com ele” – Joe

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Simbologia + doutrinas e religião

Começando pelo nome da animação: Soul tem um significado dual, ou seja, a tradução do nome Soul é “Alma” e ao mesmo tempo Soul se refere ao gênero musical, fazendo a ponte com o jazz, que está presente boa parte da animação.

Agora vamos falar de um assunto mais complexo, que é retratado tanto visualmente quanto verbalmente, mas sem focar em somente um: cristianismo, espiritismo e budismo. De forma lúdica, Soul nos apresenta brevemente religião e as doutrinas, junto com simbolismos muito breves em algumas cenas.

Em relação ao cristianismo é muito breve, mas é na questão do arrependimento e confissão. Joe depois de se reconectar consigo mesmo, percebe que ao julgar a 22 sobre a experiência em ter vivenciado a Terra, percebe que estava errado, se arrepende e confessa para Bicho Grilo. Então Joe entendeu qual era o seu sentido da vida, o sentido pelo qual ele está na Terra, que foi essas duas questões.

Na doutrina budista Nitiren também é algo breve, onde na animação é mostrada através da personagem 22 a questão da última faísca dela: a de simplesmente viver, falada no budismo Nitiren com a felicidade absoluta.

Já na doutrina espírita é aqui que é mais associado. Começando pelo nome da animação “Alma” e passando por todo processo de “pós-morte”.

“A alma é um Espírito encarnado e o corpo é apenas o seu invólucro.” – Livro dos Espíritos

Na doutrina espírita é a conexão com o mundo espiritual, a nossa evolução como espírito é o nosso caminho. Quando cumprimos nossa missão na Terra, nós desencarnamos e vamos para um lugar do mundo espiritual onde há um mentor que nos ensina e nos guia para podermos reencarnarmos de novo na Terra (menção honrosa a Emmanuel, o guia/mentor espiritual de Chico Xavier). Se o nosso espírito ainda possui alguma pendência de uma vida passada, na próxima reencarnação a missão é resolver essa pendência e assim vai indo, até chegarmos em uma evolução espiritual maior onde todas as pendências foram resolvidas e que não precise mais reencarnar em nenhum corpo mais. Basicamente em Soul foi abordado, não por completo, mas grande parte da doutrina espírita. Quando Joe desercana (morre), ele está indo em direção ao Além Vida, o que nós achamos que ele havia cumprido o que foi dado na Terra… mas ele não aceita a morte e em uma jogada extremamente inteligente, eles conseguiram abordar que Joe, não havia terminado sua missão, ele ainda havia algo em pendência com sua vida. Joe, chegando na Pré-Vida/Escola da Vida acaba virando um mentor, o mentor da 22, uma alma que não havia encontrado a sua missão e ele acaba ensinado a ela, sem ele saber, a simples missão de apenas viver. Quando um dos Zés fala na palestra dos mentores, em específico sobre a faísca/missão, é mostrado o Salão de Todas as Coisas aonde podem achar coisas que sirvam de inspiração ou no Salão de Sua Vida aonde apresenta alguns momentos da sua vida inspiradora, isso representa a nossa “escola”, onde moldamos as nossas personalidades através de um mentor lá no mundo espiritual.

Depois de tudo que foi passado, dele se reconectar com ele mesmo, ele aceita o caminho no Além Vida, mas é dado uma outra chance, agora sabendo do seu propósito aqui.

Disney/Pixar/divulgação

Temos vários e vários símbolos durante o filme, mas um deles é desconhecido por muitos: o significado da baleia.

A baleia é vista no Salão de Todas as Coisas, bem no fundo da cena. O significado da baleia é de renascimento espiritual, por vezes criação do mundo e até guia para os pescadores. No contexto de Soul podemos falar em relação ao cristianismo e ao espiritismo. No cristianismo é sobre a passagem bíblica de Jonas:

“O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou dentro do peixe três dias e três noites.”- Jonas 1:17

Muitos falam que esse grande peixe é uma baleia e Jonas ter sofrido uma morte iniciática e que a sua saída do ventre da baleia é uma ressurreição simbólica, falando sobre a reencarnação propriamente dita.

Na doutrina espírita é mais sobre o ensinamento da baleia, onde ela nos ensina a ouvir a nossa voz interior, a entender o impacto que as nossas emoções causam na nossa vida cotidiana e a seguir a nossa própria vontade.

Disney/Pixar/divulgação

Como um todo, Soul é uma animação muito questionadora sobre a nossa vida: sobre nossas escolhas, nossas prioridades, o que nos inspira, o que nos faz realmente felizes, nós estamos vivendo em virtude dos outros ou em nós mesmos… Através de um diálogo de Joe (que na verdade é a 22) e o seu amigo barbeiro Tess, deixa bem claro toda a ideia passada por Soul:

“Dizem que você nasce para fazer uma coisa, mas como é que você sabe o que é essa coisa? E se escolheu a coisa errada ou a coisa de outra pessoa?” – 22

E entendemos o propósito de Joe na Terra: não era de viver somente de música, mas era de servir de inspiração para algumas pessoas do cotidiano dele, a música era somente a paixão dele, mas o propósito era de guiar. Joe, estava vivendo sob a paixão do pai pelo jazz, virou um obsessivo pela música e não percebia que haviam outras formas de ver a beleza da vida, tanto que Joe diz em um momento que a vida dele foi uma ilusão, ou seja, uma ilusão da verdadeira felicidade dele. E por Joe servir de inspiração, ele acabou inspirando “sem querer” a 22. Falando nela, por encarnar no corpo de Joe e vivenciar o cotidiano dele, ela conseguiu aprender sobre propósito, paixão e missão… Ela finalmente encontrou a sua última faísca/missão, o último espaço que faltava para ela: que está pronta para viver na Terra.

Não adianta nós sonharmos alto com as nossas paixões e não percebemos que o mundo que está ao nosso redor, não aproveitamos. A beleza muitas vezes não está na grandeza das coisas, mas nos pequenos detalhes, nas pequenas ações. Aquilo que nos é imposto, pode não ser aquilo que nós desejamos e muitas vezes aceitamos essa imposição para que as pessoas que amamos não se decepcionem com a gente e nos aceitem de alguma forma, mas nós precisamos nos reconectar com nós mesmos e encontrar a nossa felicidade, o nosso propósito por aqui, mas no seu tempo e com paciência. É essa a lição que Soul nos traz. Viva sua vida intensamente, carpe diem.

A combinação de um roteiro maduro, com uma pitada de humor e cheio de simbologia e questionamentos da vida faz de Soul uma das, se não a melhor animação que Pixar já fez.

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