CRÍTICA: O Poço (com spoilers)

O Poço (El Hoyo, no original) é uma produção original espanhola da Netflix. Dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, estrelado por Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Emilio Buale, Alexandra Masangkay e Antonia San Juan, o filme é um prato cheio (ou não, hehe) para quem gosta de terror psicológico e ficção científica, mas fica o aviso: não coma durante o filme pois há cenas gore. Atrás do terror psicológico e ficção científica, O Poço possui várias reflexões a serem questionadas: desigualdade social e econômica, nossa natureza humana e até da nossa própria fé. DETALHE: Esse filme deixa várias questões em aberto, retirando a real mensagem que o diretor quis deixar no filme, as interpretações e referentes símbolos foram diferidas à visão da autora. Cada um pode ter a sua própria interpretação.

O longa se passa em uma prisão vertical, dividida em vários níveis constituídos por duplas e gira sob um banquete. Por ela ser vertical, ela é “dividida” como se fosse uma história: temos o começo, meio e fim. As pessoas que ficam no começo são as que tem o banquete mais completo, conforme vai sendo comido, as sobras vão descendo para os níveis mais baixos, restando nada nos últimos níveis. Cada pessoa que vemos nesse filme tiveram um propósito para estarem ali e dito isso, cada pessoa que vai para essa prisão, leva consigo algo seja ele pelo bem ou pelo mal.

Acompanhamos a trajetória de Goreng, um homem que se candidata à experiência do poço para parar de fumar, mas ele não sabe do que se passa realmente lá dentro. Goreng aliás, entende a rotina do poço através de seu companheiro de “cela”: o senhor Trimagasi. Por ele estar lá há muito tempo, obviamente ele que explica a rotina daquele lugar: você fica um mês no nível em que está, o banquete desce, você tem 3 minutos para comer (sem poder guardar comida para você) e acabando os 30 dias, você é “anestesiado” e acorda em um novo nível aleatório no dia seguinte. Um mês você pode estar no nível 1, outro mês no nível 245. A trajetória de Goreng durante o filme, nos é mostrado muitas situações questionáveis, reflexivas pelos temas que são abordados, temas esses que são importantes para serem discutidos tanto quanto crítica ou quanto à sua interpretação daquilo, já que ele possui vários simbolismos interessantes.

Esse filme não é daqueles filmes de terror que servem só para assustar com as cenas muito fortes, há muito mais do que isso no filme, justamente quando esse terror é lógico perante a crítica que o diretor quis deixar. Como um todo, o filme é muito interessante desde a sua estrutura com a edição do filme, o contraste entre os cenários (limpos/sujos), as falas que remetem a críticas subentendidas e a identificação em alguns aspectos dos personagens com a nossa sociedade: egoísmo, desigualdade, política, religião, coletividade, solidariedade e sanidade mental. Gostei de como a crítica do diretor foi passada por aqui, através de várias interpretações e simbolismos subentendidos, fora a estética que achei muito boa. As atuações não são todas espetaculares, porém temos algumas ressalvas, como Ivan Massagué, que interpretou Goreng.

Mas qual é a crítica que o diretor quis passar? E as interpretações e simbolismos que disse anteriormente? Falaremos a seguir:

  • DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA x ISOLAMENTO:

De cara, entendemos que a principal crítica do filme é: a desigualdade socioeconômica ou a pirâmide social capitalista!

Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem” – Trimagasi

Trimagasi não disse nada além do óbvio: quem está nos níveis mais altos possuem mais privilégios (mais comida) e quem está mais abaixo é tratado como miserável. Uma crítica onde a desigualdade socioeconômica tem relação ao mundo capitalista, de que muitos governos não ligam (por muitas vezes) nas classes mais baixas. Basta vermos o atual momento que estamos passando, onde muitas classes sociais altas têm mais acesso às informações e outros aspectos, que uma classe mais baixa (marginalizada) não possui. Essa relação de isolamento e distanciamento social, parte pelo pressuposto de que os níveis mais altos não se preocupam com os outros níveis, justamente por causa do privilégio etc., mas isso deixa para o próximo tópico. Essa temática de isolamento e distanciamento caiu como uma luva nos tempos atuais, infelizmente foi uma infeliz coincidência.

  • BANQUETE X 7 PECADOS CAPITAIS:

Comer ou ser comido?” -Trimagasi

Não temos apenas os níveis como um ponto importante no filme, temos também a questão do banquete! A problemática de estar em um lugar onde nem a luz do sol pode ser vista, estar aprisionado, tua companhia é uma pessoa desconhecida e o fato de sua comida ser limitada, tudo isso gera pensamentos que resultam em ações graves em certos tipos de situações. Mas o que os 7 pecados capitais têm a ver com o filme?

  • Gula: as pessoas comem tudo o que vê pela frente e não pensam no coletivo
  • Ganância: vou aproveitar a minha hora de comer, sem pensar nos outros
  • Luxúria: os primeiros níveis recebiam mais comida e jogavam na cara dos níveis inferiores a oportunidade que eles tiveram
  • Raiva: onde Goreng via a falta de comida nos outros níveis mais inferiores e pelo senhor Trimagasi que não pensou 2x antes de querer comê-lo
  • Inveja: níveis inferiores tinham dos que estavam nos níveis superiores
  • Preguiça: onde as pessoas não quiseram nem medir esforços para ajudar
  • Vaidade: é quando a mãe da “criança” mata o cachorro da outra simplesmente da companhia que ela tinha.

Juntando tudo isso, partimos para um único caminho: o da nossa sanidade. Até que ponto você aguentaria passando por canibalismo, assassinato, insegurança, raiva, mentiras e sem perspectiva de saída daquele lugar? Você ao menos iria alucinar com tudo isso: com passagens bíblicas e até você ter realmente trazido a sua filha para o poço. E essa filha seria de quem? Seria da personagem chamada Miharu, que Goreng acaba conhecendo quando ela começa a descer através da mesa do banquete e descobrindo que ela está a procura de sua filha.

  • RELIGIÃO X SIMBOLISMO

Falando primeiramente de simbolismo por aqui, antes de entrar no ponto de simbolismo + religião, eles estão tanto em forma de citação quanto de metafórico. Logo no começo do filme, quando nos é mostrado a rotina do poço, conhecer o senhor Trimagasi e suas histórias, nós descobrimos que você pode levar algo consigo durante a experiência. Cada um poderia levar alguma coisa, mas falaremos unicamente de Goreng. Goreng levou o livro Dom Quixote de La Mancha e para quem não conhece, Dom Quixote era visto como um senhor meia idade, sonhador (e conhecido como louco por muitos), mas que tinha um senso de justiça. E não é à toa que esse livro foi escolhido: Goreng se assemelha muito à Dom Quixote em relação à aparência quanto a esse senso de justiça e de loucura, pois ele acaba ficando louco, ouvindo vozes de alguns personagens mortos.

“Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia.” – João 6:54

Essas alucinações que o Goreng tem dos personagens e por isso que estão nesse tópico, é pelo fato de que essas alucinações citam algumas passagens bíblicas e ambas relacionam Goreng com o Messias, o Salvador… Ou seja, aquele que vai libertar todos daquele lugar. Outro fato que é relacionado a temática religiosa, se deve a outro personagem: o Baharat. Como sendo um homem de muita fé, os dois juntos partem para uma missão um tanto quanto suicida: descer através da mesa do banquete até o final para saírem de lá. No meio do caminho, entra um outro personagem chamado de Brambang. Brambang é muito respeitado por Baharat, por acreditar que Brambang é um homem sábio e que naquele momento, qualquer conselho vindo dele seria de certa utilidade. E foi.

No banquete havia uma pana cota (uma sobremesa que parece uma gelatina com alguns ingredientes a mais) e através dessa pana cota, eles interpretaram que ela voltando para a Administração, ela seria a mensagem, ou seja, ela seria a libertação de todos. Mas porque a pana cota?

  • Em determinados momentos (com uma montagem bem feita) aparece uma cozinha super limpa, com vários funcionários e o metre. Esse lugar é chamado de Administração, porque é ela que comanda a prisão, ou seja, através do banquete, as pessoas são controladas por ela. O simbolismo por aqui gera em torno de várias questões. A Administração ser o céu; o metre ser Deus, porém um Deus egoísta, já que os alimentos tinham de ser extremamente perfeitos e não ligar muito se quantidade de comida é o suficiente para todos os níveis. A pana cota, por ter sido considerada como a mensagem, em um determinado momento, o metre acredita que havia um “fio de cabelo” nela e fica furioso, pois algo tinha acontecido fora dos planos: um desperdício? Um perfeccionismo? Um delírio?
  • A filha de Miharu (a mãe que estava descendo a mesa do banquete todos os anos à procura dela) pode não existir e ser somente uma alucinação de Goreng e Baharat, já que os dois vão a níveis que jamais imaginavam que estariam. A menininha pode ser interpretada como a própria esperança, fazendo alusão ao fato de que o lugar por mais podre possível, há esperança. Obviamente ela não comeu a pana cota (até porque alucinação não come, não é mesmo?) e o alimento retornou à Administração intacto libertando a todos (quebrando o sistema). Se você juntar essa cena com a outra em que o metre acredita que encontrou realmente um fio de cabelo na pana cota, é exatamente pelo fato de que ninguém havia comido o alimento e por isso dele ter ficado tão furioso. Goreng e Baharat acabam morrente pelo caminho.
  • Outra interpretação é de que a menininha realmente existiu e que através da coletividade (forçada) de todos realizada por Goreng e Baharat, conseguiram levar um alimento até último nível, que era considerado impossível. Goreng se sacrifica para salvar a menininha e ela acaba voltando à Administração, mas porque ela seria a mensagem? É basicamente pelo fato de que não sabiam da criança até então (já que era proibido menores de 16 anos) e ela ser um fruto de esperança e possível transformação daquele lugar (a libertação).

Por fim, o último dos simbolismos e mais um da temática religiosa, é o fato do número do último nível, onde a “menininha” estava: 333. O número 333 seria diretamente ligado à idade de Jesus Cristo quando morreu e relacionado ao sacrifício de Goreng no final do filme. Esse número também pode ser interpretado com as duplas, multiplicando por 2 e resultando no número do Diabo: 666. Bem entre o céu e o inferno MESMO!

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