RESENHA: Fredric, William e a Amazona. Perseguição e Censura aos Quadrinhos

Na década de 50 em um Estados Unidos pós-guerra aconteceu um dos grandes marcos da história dos quadrinhos norte-americanos, o Comics Code Authority. A criação de um código de ética que faz com que as editoras imponham uma autocensura em suas publicações tem relação intrínseca com o psiquiatra Fredric Wertham que afirmava que as tão famosas revistinhas não só iam contra as “morais e bons costumes do cidadão de bem” como também eram os principais motivadores para crianças terem atitudes violentas e de delinquência.

Wertham é um dos personagens principais da HQ Fredric, William e a Amazona. Perseguição e Censura aos Quadrinhos de Jean-Marc Lainé e Thierry Olivier, traduzido por Rafael Meire e publicada pela Editora Pipoca e Nanquim. O outro homem do título é William Moulton Marston, inventor de uma espécie de detector de mentiras que realizava a medição da pressão sistólica. Mas sua presença aqui é por um feito um pouco mais relevante para nós: criar a Mulher Maravilha (daí o Amazona no título). Com vidas em paralelo, temos o cenário montado para esta que é uma espécie de biografia de ambos os indivíduos e do próprio momento histórico da indústria de gibis.

Página de Fredric, William E A Amazona. Perseguição E Censura Aos Quadrinhos. Amazon.br

A apresentação inicial dos personagens já diz muito sobre cada um. Enquanto Wertham escreve uma carta para Freud narrando sua chegada aos Estados Unidos, Marston conversa com sua esposa sobre uma notícia jornalística que critica seu trabalho. A dicotomia entre eles e como cada um percorrerá seu caminho profissional fica muito clara já nessas primeiras páginas. Enquanto Frederic expõe seu campo de estudos (“Esse paradoxo atiça minha curiosidade”), William está focado na publicidade e divulgação de suas façanhas (“Esses jornalistas não entendem nada”).

Com os estigmas que estes homens possuem dentro do mundo dos quadrinhos, poderia ser uma saída fácil pintar Wertham como vilão absoluto e Marston como mocinho. Lainé até corre o risco de cair nessa cilada em alguns momentos, mas ele é inteligente o suficiente para inserir cenas que mostram as nuances dos personagens. Se William se porta como feminista – para a época – e é casado com duas mulheres, vemos que tal relacionamento foi praticamente imposto por ele mesmo. Já Frederic possui uma importante clínica de atendimento no Harlem no qual oferece suporte psicológico para ex-combatentes negros e famílias pobres da região.

Ainda que as tais nuances de cinzas dos personagens sejam também refletidas na arte aquarelada de Thierry Olivier, em momentos chaves existe uma quebra na própria colorização – e que poderia ter sido aplicada em mais ocasiões. Se Wertham é um puritano estudioso de seriais killers, ele recebe a forte cor vermelha, uma cor quente relacionada ao perigo e à violência. Já o pacifista que se importa com ideais feministas recebe o azul, uma cor fria muito relacionada a harmonia e tranquilidade (repare por exemplo qual é o primeiro quadro azul de William). Mas, afinal, estamos falando sobre uma HQ que está retratando um momento crucial para os comics americanos, que causou a falência de editoras e uma mudança extrema no mercado. É claro que, no fundo, existe sim um vilão e um mocinho a serem apontados.

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A obra exprime mais de 30 anos em pouco mais de oitenta páginas (a publicação possui 116 páginas, incluindo os extras). Pode parecer pouco para um período tão grande e com tantos acontecimentos e realmente a sensação é a de ser um material um pouco apressado. No início até assusta um pouco a rapidez com que Fredric perde seu sotaque, por exemplo. Mas quando nos atentamos às datas vemos que é a passagem de tempo entre as viradas de página que é veloz demais. É possível perceber que os autores inclusive possuem completa noção disso, afinal inserem elementos que identificam essa passagem de tempo a todo momento, sendo o principal e mais importante deles a banca de jornal. Mas querer mais conteúdo de um material não necessariamente é um defeito, afinal pode indicar que ele é bom o suficiente para não querermos parar.

Fredric, William e a Amazona é bastante eficiente em montar um panorama dos acontecimentos e personagens que levaram ao evento do Comics Code Authority, assim como suas imediatas consequências e possui um final que pode ser considerado otimista. Apesar de precisar de um certo background para entender o material por completo, ele é também um ótimo incentivador para o leitor pesquisar mais sobre o período. Nele é citado, por exemplo, o Código Hayes, também um movimento de autocensura aplicado pela indústria cinematográfica ainda na década de 30. Além disso, em pleno 2021 nunca é demais falar sobre censura no Brasil. Entender o caminho que leva à repressão é essencial em um país que possui um governo como o nosso. Nem dois anos após o episódio do beijo entre Hulkling e Wiccano na Bienal do Rio de Janeiro, é bastante claro que essa ainda é uma pauta que precisa e deve ser discutida à exaustão.

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