Mulheres no Studio Ghibli

Muitos dos meus filmes possuem protagonistas femininas fortes – meninas corajosas, autossuficientes que não pensam duas vezes antes de lutar pelo que elas acreditam do fundo do coração. Elas precisarão de um amigo, um apoiador, mas nunca um salvador. Toda mulher tem a capacidade de ser a heroína (da história) tanto quanto qualquer homem.” – Miyazaki Hayao, 2013, após questionado sobre suas protagonistas.

A discussão de representatividade vem tomando a cultura pop ocidental. Desde a estreia e sucesso de filmes como Mulher Maravilha ou Frozen, Hollywood decidiu que está aberto a ouvir histórias além do que estamos acostumados. Filmes de princesa começaram a mudar gradualmente, com “princesas sem príncipes”, como venderam os filmes Moana, de 2017, ou Frozen, em que o que salva as protagonistas não é um beijo mágico, mas a conexão e o amor entre duas irmãs. Porém, ainda me incomoda um pouco a forma que essas discussões vêm sendo conduzidas, principalmente quando se trata de filmes de heróis e princesas. Os filmes são sempre descritos como um bom exemplo para meninas se empoderarem”, como se fosse uma subcategoria de filmes – um nicho específico para meninas, e não filmes com experiências universais que a protagonista é uma mulher.   Enquanto é esperado que meninas assistam filmes com protagonistas masculinos e se identificar com a narrativa, o oposto ainda não é oferecido por Hollywood, e isso me incomoda.

Mesmo após essas mudanças, a indústria cultural demonstra receio em mudar drasticamente suas protagonistas. Ela continua criando princesas que, mesmo sem príncipes, ainda são extremamente produzidas e idealizadas. Elsa, de Frozen, é um exemplo de princesa com tais características, pouco próximas da realidade.

Se o foco do consumo de mídia saísse do mundo ocidental, seria possível reconhecer a existência de representatividade feminina em uma pequena empresa de 4 amigos desde a década de 80 em um país que, mais do que frequentemente, é considerado machista: o Japão. Mais especificamente, o Studio Ghibli. E é sobre isso que falaremos hoje.

 

Studio Ghibli?

Caso você não conheça o Studio Ghibli, é um estúdio de animação fundado em 1985, em Tokyo, por 4 amigos:  Hayao Miyazaki, Isao Takahata, Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma, após o grande sucesso de Nausicaa Valley of The Wind (1984), dirigido e roteirizado por Miyazaki. Em 1986, logo 1 anos após a fundação do estúdio, foi lançado Castelo No Céu, uma linda aventura entre dois amigos que descobrem um reino nos céus. O estúdio até hoje, ao longo de seus 21 filmes, tem a maioria dos filmes dirigido por Miyazaki ou Takahata, e a produção de 16 deles são de Suzuki. É claramente um estúdio que protege os seus, e conseguiu de fato criar sua marca no meio cinematográfico, sendo inclusive o responsável pelo primeiro e único Oscar de animação em língua que não o inglês (A Viagem de Chihiro, 2001). Caso você ainda não tenha assistido aos filmes, estão quase todos – após uma relutância de Miyazaki, extremamente protetor de seus títulos – disponíveis na Netflix, com excessão de Túmulo dos Vagalumes.

A questão feminina

Em 1989, estreavam dois filmes que vou usar como exemplo para esse texto: A Pequena Sereia e Serviço de Entregas da Kiki. E antes que os fãs da Disney fechem essa aba e parem de ler, por favor, eu amo A Pequena Sereia! Porém são dois filmes extremamente diferentes que servem como um ótimo exemplo, então ocasionalmente decidi usar. Ainda sigo ansiosa para o live action e torcendo para o Daveed Diggs ser o Sebastian. Mas fiquem aqui, vocês vão me entender.

A Pequena Sereia é uma história clássica, contada e recontada. Ariel, de 16 anos, é uma sereia. Ela quer andar, abre mão da sua voz, consegue pernas, conhece um príncipe, se apaixonam, ela ganha a voz de volta, casam e “viveram felizes para sempre”. Enquanto isso, temos a jornada de nossa Kiki, uma garota de 13 anos que para virar uma bruxa, precisa ficar 1 ano fora de casa e se provar capaz, precisando assim construir relações e se estabelecer em uma cidade grande e desconhecida. (E tem um gato muito engraçado também). Kiki foi um sucesso de bilheteria no Japão e até hoje é uma das histórias mais clássicas para crianças.

Sem negar a misticidade e magia de cada estúdio, é impossível deixar e notar o quão os rostos do Studio Ghibli nos apresentam mulheres reais, enquanto que produções da Disney colocam meninas com corpos extremamente idealizados, algo que já foi inclusive alvo de críticas. Sabemos (e amamos) a grandiosidade de ambas as histórias, porém não podemos deixar de apontar a problemática da Disney e suas princesas, em que a felicidade na maioria das vezes, mesmo com as ressignificações modernas, é encontrar um príncipe e casar. Aurora, Ariel, Bella, Cinderella, etc. As jornadas do Studio Ghibli, por outro lado, são jornadas com meninas reais (elas realmente parecem ter a idade que têm) e com problemas reais, apesar da grande magia e misticidade de suas histórias, tendo como grande exemplo o filme de 2001, A Viagem de Chihiro, em que uma menina vai para um mundo mágico, porém a metáfora é nada mais que o amadurecimento.

Não me entendam mal, eu adoro um romance, inclusive choro litros assistindo os clichês de romances como Amor e Outras Drogas. Porém, que imagem está sendo passada quando a jornada principal de quase todos os filmes de princesas são personagens com proporções irreais para a idade buscando um príncipe? Ou quando sentimos que nossas jornadas são subcategorizadas, como se não possuíssemos experiências como qualquer pessoa tentando sobreviver nesse mundo cada dia mais confuso? Não é atoa que a jornalista Gabrielle Bellot escreveu no The Atlantic: “Quando assisti aos filmes de Miyazaki, vi pela primeira vez, representações de mulheres e meninas que pareciam reais e identificáveis, porém mágicas ao mesmo tempo.”

 

Mas, especificamente, Ghibli

Acredito que mulheres fortes podem ser vulneráveis e apaixonadas, e encontramos isso em narrativas do Ghibli sim, porém a jornada vai além disso. Como o próprio Miyazaki disse:

“Desacredito da regra não escrita de que só porque um menino e uma menina aparecem em um mesmo filme, necessariamente é sobre romance. Prefiro criar relacionamentos um pouco diferentes, em que os personagens se inspiram a viver – se eu conseguir, creio que estarei o mais próximo de retratar a verdadeira expressão do amor.”

Eu poderia analisar uma por uma das personagens femininas do estúdio, mas:

  1. Isso daria um texto gigante;
  2. Existem vários textos ¨rankeando¨ as personagens, e a intenção aqui não é de hierarquizar ou escolher qual experiência é mais feminina, pois creio que isso foge completamente do ponto;
  3. A análise é sobre como eles conseguiram construir narrativas em torno de meninas comuns, que poderiam ser cada um de nós, e ainda conseguiram manter a magia e ternura que só o Ghibli tem.

Iremos encontrar sim, romance romântico em suas narrativas, porém, encontraremos personagens autossuficientes e a construção do feminino bem diferente do que estamos acostumados em diversas produções de animações, mesmo com o cenário mudando aos poucos.  Encontramos bruxas, crianças, princesas guerreiras, uma menina-peixe, uma avó amorosa, irmãs apoiadoras, etc. Mesmo em narrativas que o foco não tem uma personagem mulher, como Porco Rosso, elas não caem em estereótipos extremamente infundados ou desconfortáveis. Desde a década de 80, Miyazaki, Takahata, e outros, vem buscando criar narrativas que não se encaixam em subcategorias de filmes, como se filmes com protagonistas mulheres pudessem ser apenas para meninas, e sim narrativas com protagonistas que são meninas, lutando e tentando descobrir como viver. E não há nada mais universal que uma pessoa tendo que batalhar e buscando bravura para enfrentar o mundo.

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1 comentário

  1. Que texto maravilhoso! Estou encantada com as produções do Studio Ghibli, ainda estou descobrindo as obras, mas minhas preferidas até agora são Nausticaa e A princesa Mononoke.

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