Adaptações audiovisuais costumam ser controversas. Se em um livro as expectativas são construídas em cima da imaginação de cada leitor, quando falamos de adaptações de histórias em quadrinhos não há muito espaço para invenções. Ou você é fiel àquele universo, personagem e clima que já existe ou terá que lidar com a responsabilidade de alterar a obra original. Com Locke & Key não poderia ser diferente.
Baseada na hq de mesmo nome – que possui 37 edições publicadas, 5 one-shots com histórias do passado e seis indicações ao Eisner Awards – acompanhamos a trajetória da família Locke, que após a traumática morte do patriarca Rendell Locke, se muda para a enorme casa na qual seu pai cresceu. Chegando lá, Bode, o filho mais novo, lidera uma verdadeira caça à chaves que realizam magias impressionantes, juntamente com seus irmãos Tyler e Kinsey. Com isso, descobrem não só um novo mundo de fantasia, mas também grandes segredos da juventude de Rendell e seus amigos.
A série da Netflix, que estreou na última sexta-feira dia 7 de fevereiro, conta com dez episódios nos quais temos uma certa bagunça de gêneros. Com uma atmosfera de terror em poucos momentos, bastante fantasia – afinal estamos falando de chaves mágicas -, suspense e dramas adolescentes, a produção não consegue se aprofundar em nenhum deles.
Uma vez que a história que se baseia no passado de Rendell, os flashbacks marcam presença e são, inicialmente, muito bem utilizados em momentos pontuais e justificados. Em alguns deles é necessário um certo malabarismo de roteiro, mas funcionam.
Se é fácil realizar determinadas “mágicas” nas páginas desenhadas de uma hq, para uma produção audiovisual o realismo é sempre um dos grandes problemas e nisso Locke & Key se sai bem. Com cenários bem construídos e adaptações inventivas da utilização de algumas chaves, como a Head Key, as soluções visuais que a série adota são bastante eficientes.
É compreensível que o roteiro tente evitar momentos de necessidades de grandes efeitos visuais, como os diversos passeios que Bode realiza quando vira um fantasta e até a inserção de diversas chaves que encareceriam a produção, mas a divisão clara da série em dois momentos – primeiro a captação e apresentação de todas as chaves e, depois, o embate com a vilã – faz com que os personagens simplesmente esqueçam o poder dos artefatos que possuem em prol de uma consequência de roteiro necessária para o desenvolvimento posterior dos fatos.
Além disso, essa divisão também prejudica muito a profundidade e carisma que a vilã deveria ter. Com episódios em que praticamente nem aparece, os irmãos lutam para não deixar as chaves caírem em suas mãos, mas, a não ser com as insinuações de maldade em breves falas, em nenhum momento temos a comprovação palpável do perigo que ela representa. E, quando a série finalmente nos mostra a real inteligência da personagem – na última cena da temporada -, subestima o espectador com uma explicação extremamente expositiva como quem diz “olha só isso aqui que você não percebeu desde o começo”. Inclusive esse plot final é interessante, apesar de pessimamente apresentado, e abre uma boa distância das hqs.
É sempre difícil analisar uma adaptação sem levar em conta o material base, principalmente quando este é tão eficiente e bem amarrado. A série possui a coragem de tomar seus próprios rumos sem fazer uma adaptação extremamente fiel, mas tentando abaixar um pouco o tom de tudo acaba e se perdendo entre magias, consequências e necessidades de roteiro. A impressão que fica é que apresentaram toda a fantasia que podiam apenas para esquecer dela depois. Além disso, a história em quadrinhos possui discussões muito expositivas e assertivas de temas como vida após a morte, racismo, homofobia, não binariedade e alcoolismo. Destas, a produção da Netflix faz um bom trabalho em colocar em pauta as últimas duas, além de também falar um pouco sobre bullying e depressão, mesmo que superficialmente.
Existem alguns boatos de que a série já está renovada para uma segunda temporada, mas nada foi confirmado. Caso venha a confirmação, é necessário que o streaming aposte mais não só na fantasia da história, mas também se aprofunde nas discussões presentes no material base, pois esse é todo o charme de Locke & Key.