ANÁLISE: a misoginia no mercado gamer em 2020.

 

Esse não foi um bom ano para a indústria dos videogames— afirmação um pouco dura para um começo de artigo, mas tanta coisa deu errada que é desonesto fazer um apanhado do ano de maneira positiva. Óbvio que tivemos momentos altos, performances sensacionais, cenários incríveis e uma grande participação do protagonismo feminino. Mas tudo que tinha para dar certo, foi sendo desconstruído. Como um castelo de cartas sendo afetado pelo vento. Quer ficar por dentro de alguns casos da indústria em 2020? Senta no sofá, deita na cama, e aproveita o artigo. 

Algo predominante esse ano foram os crunches. Crunch, por falta de outra definição, é forçar o seu trabalhador a ficar lá, preso na sua empresa, até que o produto saia. O crunch na Naughty Dog foi o mais comentado do ano— mesmo assim, levaram melhor direção no Game Awards. Direção. Um board que fazia seus funcionários chegarem na exaustão quase toda semana, levou melhor direção em cima de Hades— grande aposta Indie, que investiu em férias forçadas para seis desenvolvedores. O resultado? Um jogo que não deveria ter tanta repercussão, ganhou uma legião de fãs e defensores online. 

Ainda sobre a Naughty Dog, muito se elogiou sobre o papel de Abby, uma mulher com músculos pronta para encarar qualquer um— mas seu rosto e voz foram separados da sua atriz de corpo. É correto, isso? Tentar passar uma mensagem, e no final das contas não usar uma mulher com o corpo similar ao de Abby? Muitos se colocaram em defesa de dela e seu corpo sem fazer ideia disso. Já que, obviamente, apesar do erro da Naughty Dog existem mulheres assim. Bom, o acerto veio com Ellie e outras coisas: nunca vimos tantas facetas da mulher furiosa como testemunhamos em The Last of Us 2. A representação LGBTQIA+ também foi firmada e a tentativa de boicote do jogo deu em vendas absurdas na casa dos milhões. 

Mas, dessa forma, o crunch vai continuar. E as empresas indies vão continuar sendo vistas apenas pelos verdadeiros apaixonados pelo gênero. 

Agora, um pouco mais de Brasil: meses atrás, Microsoft demitiu a apresentadora Isadora Basile. O motivo? Ela relatava as ameaças que sofria de estupro e morte. A desculpa da XBOX foi bem meia boca, sobre redução de gastos e ter menos canais. Como se alguém tivesse acreditado nisso. E mais Brasil na confusão: recentemente, a equipe inteira do Canal Loading pediu demissão em massa alegando diferenças irreconciliáveis e censura. Todos eram da equipe do Metagaming. Os integrantes estão sob sigilo de contrato, mas seus posts fazem referência ao período de censura da ditadura militar. 

De acordo com o “Na Telinha” tudo teve fim quando uma das integrantes da redação fez uma coluna criticando uma parceira da Loading— o que gerou uma bela puxada de orelha e proibição. Não bastasse isso, a Loading estava irritada com a frequência das apresentadoras falando sobre o machismo no universo gamer. Curioso que eles foram e provaram o ponto delas. Barbara Gutierrez, acabou sendo uma das poucas que falou mais “não conseguiria falar sobre os assuntos que são importantes para mim e sempre permearam minha carreira como temas necessários para a evolução dos esportes eletrônicos.” Essa declaração foi feita em seu twitter pessoal. 

Claramente damos todo apoio ao grupo que se retirou do canal, e infelizmente, isso é um problema estrutural na indústria. 

Não só aqui, mas lá fora também. Já viram a bancada da Overwatch League? Uma mulher e uma entrevistadora contra vários homens. Já notaram a comunidade de VALORANT? Um jogo que possivelmente não explodiu como poderia pois foi tomado por trolls e pessoas preparadas para arruinar a experiência do outro no microfone? Nem Call of Duty tem a fama de VALORANT, e este último, tem um gigantesco público LGBTQIA+. 

Mulheres jogando em time profissionais ao lado de homems? Você conta nos dedos. Geguri, do Overwatch, foi substituída. Todas são sempre substituídas. Pois “não jogam bem”. Mas relatos que ela sequer tinha o computador próprio no QG para treinar por tempos. Detalhes: quando era streamer, a jogadora era tão boa que teve de provar que não usava cheat. 

Vamos apoiar streamers mulheres! Incentivem a causa feminina no mundo dos jogos, porque, veja bem, ninguém joga com o gênero, mas com o discernimento. E oportunidades. Isso nos traz a um tópico sensível que muita gente parece ter a “solução”, mas ela não apareceu até agora. 

Impossível evoluir em multiplayer quando sua primeira reação é mutar o próprio microfone, numa ansiedade prévia, na certeza de que se algo der errado… A culpa é sua. Somos silenciadas, literalmente. No mesmo instante quando percebem que há uma mulher no grupo, toda culpa de derrota recai sobre ela. São poucas as exceções de caras que defendem— que usam sua voz para dar um basta no assédio. Não adianta um “fica calma”, ou um “para aí, mano” ao assediador. Tem que denunciar. Tem que apoiar, fazer parte, e os pais de meninos gamers precisam prestar atenção nas crianças que estão educando. No modo com o qual eles tratam mulheres e meninas online. O bullying é virtual, mas a cicatriz é real, a marca fica na mente. Te incapacita, torna insegura, vai minando sua vontade de fazer algo que antes te trazia tanta alegria. Te tira o ânimo de jogar. 

“Você não é uma jogadora de verdade.” Isso tem um termo, em inglês: gatekeeping. O ato de controlar ou limitar acesso à algo. E nada disso é verdade, mulheres jogam, e muito. O IGN mostrou, em matéria desse mês, que apenas no Sudoeste da Ásia o número de mulheres que jogam aumentou em 40% no ano de 2019. E em junho de 2020, o New York Times fez uma matéria reforçando que mais de 70 mulheres da indústria gamer tinham feito denúncias de assédio em ambiente de trabalho e online. Foram histórias na Twitch, no Twitter, YouTube e TwitchLonger. Dentre as alegações, existem algumas séries contra um jogador profissional de DESTINY: toque inapropriado, propostas de sexo e assédio online. 

Brooke Thorne, streamer, fez uma alegação bem interessante, “quando é uma reprimenda, é um problema com uma pessoa; quando são múltiplas denúncias, é um problema com a indústria.” 

Enquanto isso, temos de usar subterfúgios para nos distrair online como qualquer outro jogador— exemplo, um player medíocre irá se divertir muito mais na plataforma online. Enquanto nós, temos de silenciar microfones,  criar grupos de confiança, ou nos tornarmos excepcionais em algo que às vezes deveria ser apenas diversão. Digo às vezes, porque também somos extremamente competitivas. 

E apesar das promessas e mais promessas das companhias, continuamos com o mesmo problema. Os sistemas de denúncia são falhos, bem falhos: basta ir lá, e fazer outra contra. Jogos como Apex Legends em consoles sequer possuem uma forma de denunciar; as denúncias em Overwatch quase nunca dão em algo, sem falar nas de Call of Duty. 

Algumas medidas paliativas, porém, são campeonatos brasileiros femininos: por exemplo, o de R6 e CS:GO. Mas em times mistos, normalmente existe a “jogadora totem”, que está ali apenas para as aparências e joga somente quando não há nada para perder. Existe, porém, uma pequena esperança em VALORANT, que irá manter uma Liga Feminina com os mesmos valores pagos aos homens, regras iguais, ou seja, um Campeonato nos modelos já “respeitados” dos masculinos. É triste, porém, que a gente precise separar todo mundo para existir algum respeito pelas jogadoras. Na verdade, é um tipo de prova final que não existe oportunidade no ambiente gamer. Estão literalmente criando uma atmosfera feminina para tentar fazer o cenário crescer. Uma espécie contorcida de respeito. Respeito esse, que existe de alguma forma— meio duvidável— nos bastidores. Entre casters, administradoras de mídias sociais, especialistas. Mas já sabemos, há sempre o “porém”. 

Podemos permanecer. Desde que a pauta não seja o machismo. 

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