Ganhador de diversos prêmios no último ano, a hq Pele de Homem chegou em julho ao Brasil pela Editora Nemo. Escrito por Hubert (que infelizmente faleceu poucas semanas antes do lançamento da obra), desenhado por Zanzim e traduzido por Renata Silveira, a obra se passa da Itália Renascentista onde Bianca é prometida para Giovanni sem nem mesmo conhecê-lo. O que ela não sabe é que existe uma pele masculina em sua família que passa de geração em geração. Vestida como Lorenzo ela sai pelas ruas não só para entender mais de seu futuro esposo, mas também para viver um pouco dos benefícios oferecidos aos homens daquela sociedade. E o que se inicia como uma simples fábula, se torna um grande panorama social que perpassa por assuntos tabus ainda hoje.
Lendo a sinopse é fácil identificar um dos temas mais diretos do material: a sexualidade, identidade de gênero e o machismo. Com um item que literalmente muda um corpo feminino para masculino – inclusive funcionalmente -, Bianca se liberta das amarras impostas às mulheres para conhecer o prazer sexual que os homens são tão acostumados. Nas primeiras páginas já vemos algumas das consequências de uma sociedade patriarcal e machista, mas a obra vai muito além de apontar os efeitos práticos nas mulheres.
É de se estranhar num primeiro momento a liberdade homossexual existente na tal cidade, mas tudo é explicado nos diálogos. Giovanni se um torna uma espécie de guia para Bianca, vestida com a pele de homem, e aponta o quanto aquela prática é comum entre os homens pois “Esse corpo amigo que é como o nosso e que desabrocha, como não experimentar? As mulheres são tão distantes, tão diferentes”.
Essa aparente utopia é quebrada quando o próprio Giovanni não aceita ser apontado na rua como a “mulher da relação” pois seria um vexame para ele. Ou seja, é socialmente aceitável o relacionamento entre os dois, desde que o nobre mais velho incorpore o papel de macho alfa. Nessa passagem Lorenzo/Bianca é categórico em apontar que tal atitude acontece porque as mulheres são consideradas inferiores e que isso deveria mudar. Giovanni, assustado com a sugestão, retribui com o ainda muito famoso “Está na Bíblia”.
Como o trecho citado acima já mostra, existe uma grande relação inerente entre o machismo e a religião e esta é outra temática crucial da hq. Em determinado momento um pastor da cidade assume a responsabilidade de “salvar” os cidadãos, promovendo um verdadeiro estado autoritário que, é claro, recai muito sobre os ombros das mulheres. Se uma mulher trai seu marido porque ele fazia o mesmo, é ela quem sofre um castigo público e dias de verdadeiro inferno.
Não podemos deixar de citar também a discussão envolvendo a temática do casamento. Enquanto Bianca se preocupa em conhecer seu marido para poder amá-lo, Giovanni encara como uma “negociação que envolve ir para a cama”. Além disso, diversos outros relacionamentos conjugais perpassam a história e o texto de Hubert faz questão de destacar o quanto, mesmo afetando todos os envolvidos, uma sociedade machista é prejudicial principalmente para as mulheres.
A arte de Zanzim pode parecer um pouco diferente em um primeiro olhar, mas é totalmente eficiente em estabelecer a atmosfera da história. Seus traços e colorização lembram muito a arte grega em cerâmica, inclusive com a utilização massiva dos tons alaranjados do barro no qual tais materiais eram pintados. Você realmente se sente dentro daquela cidade meio claustrofóbica, recheada de libertinagens noturna e penitências diurnas. Suas páginas simples sem requadros nas quais retrata os personagens se movendo por um único cenário são espetaculares.
Pele de Homem é uma hq que pode ser considerada uma fábula adulta e não são necessárias análises tão profundas para entender que é, na verdade, um grande estudo sobre a sociedade na qual vivemos hoje. É comum em histórias que acontecem em anos passados nos referirmos a determinadas ações como algo comum para a época – sim Game Of Thrones, estamos olhando para você -, mas o grande trunfo da obra é que exceto pela pele de homem em si nada do que se passa ali é impossível de acontecer em pleno 2021. Afinal ainda hoje vivemos através de códigos sociais e morais impostos por uma pequena parcela da sociedade e podemos achar que precisamos fingir ser o que não somos. Nos resta decidir se vamos ou não fazer parte deste teatro.