ANÁLISE: Rey Palpatine e a desconstrução de uma heroína.

Rey.

Rey Kenobi. Rey ninguém. Rey Skywalker. 

Muitas foram as especulações ao redor das origens de Rey, aqui fora, no mundo real. Fruto de fãs que simplesmente não conseguiam aceitar que a Força tenha escolhido uma mulher para equilibrar a balança. Quando a escuridão cresce, a luz nasce para se encontrar com ela. No momento onde Ben Solo continua lutando contra “todas as vozes em sua cabeça”, uma garotinha nasce. A esperança dos Rebeldes. Ou melhor, da Aliança. 

Esse é o conceito apresentado em Star Wars. “The Darkness rises and the Light to meet it” é uma experiência quase espiritual sobre equilíbrio. Isso é um conceito espalhado amplamente por todos os momentos de conflito da série; Luke e Leia vs Vader. As Guerras Mandalorianas. Todavia, Star Wars é um elemento quase sagrado na vida de muitas pessoas, e o foi por décadas.

Elas criaram esse conceito de que tudo seria salvo e resolvido por Luke Skywalker. De repente, temos uma nova trilogia e o outrora herói agora tornou-se um eremita recluso, a lenda se desligou da Força por vontade própria como efeito colateral do seu momento de fraqueza com o sobrinho. Agora, pensem: você é uma lenda, um herói, alguém que em curto espaço de tempo foi de fazendeiro para a pessoa mais importante da Galáxia. Tudo que você faz é vigiado, escrutinado, viram contos na boca das pessoas. 

O conceito de que Luke Skywalker jamais cometeria um erro é quase ingênuo. E esse erro, ainda por cima, acabou sendo compreendido mesmo pelo resistente Mark Hamill. Que eventualmente entendeu: sim, ninguém continua perfeito para sempre. E mesmo contando a fraqueza que ele teve (já escrita nos rascunhos de George Lucas, que pretendia isolar Luke no futuro), ele ganhou uma das saídas mais heróicas do cinema.  A batalha entre ele e Kylo elevou os poderes de Luke para algo ainda mais épico do que jamais tínhamos visto. O herói retorna, e salva a Resistência da morte certa.

Mas, por que falar de tudo isso? Pois, frustrando a larga base de fãs do personagem, não era ele o predestinado para balancear a Força. Mas sim, Rey. Uma menina abandonada por seus pais em um planeta onde sobreviver significa tornar-se aço. E ela o virou. Catadora de peças, caçadora, exploradora. Teve de aprender a pilotar. Tudo na vida de Rey foi conquistado pela solidão, pela Força, e por ela mesma. 

Muitos podem não compreender o valor de “Rey ninguém” para várias mulheres, crianças, e outras pessoas adeptas do conceito. Mas ela era uma personagem feminina que finalmente desafiou o conceito de que para ser especial, você precisa de uma linhagem especial. Para ser importante na vida, você precisa de uma família e influência desde o princípio. No mundo de Star Wars, isso significa fala sobre ser uma guerreira excepcional. Porém, muitos dos que criticaram o conceito de “uma mulher qualquer surgir do nada”, esquece o mundo onde vivemos. É isso que devemos levar para a vida? Que apenas os nascidos em berço de ouro merecem o sucesso? A glória? Essa forma de pensar é, no mínimo, redutiva.

Mas não para por aí: o problema não surgiu por ela ser desvinculada dos Skywalkers. O problema nasceu por ela ser uma mulher. Caso outro homem, por exemplo, fosse o grande herói, metade das críticas teriam caído. Com Rey, as mulheres finalmente conseguiram uma Jornada da Heroína, conceito criado por Maureen Murdock. E detalhe, ela o criou pois o inventor da jornada do herói lhe respondeu em uma palestra que as mulheres “passavam pelas mesmas coisas”. E isso simplesmente não é verdade.

Rey nasceu para todas nós, cansadas de ver o homem exercendo protagonismo do começo ao fim. Luke Skywalker teve sua trilogia. Anakin Skywalker teve sua trilogia. Um sobrenome é assim tão importante, ao ponto de destruir uma garota que criou a si mesma? Aparentemente, para JJ Abrams e companhia, sim. 

Desde o começo, conhecemos uma mulher com espírito guerreiro, explorador, cujas habilidades foram construídas por conta do abandono e ambiente inóspito onde viveu. Uma verdadeira heroína de Space Opera— mas, por ela ser uma mulher, já no Episódio VII foi criticado que ela fosse capaz de ferir Kylo Ren. Ignorando completamente que a Força quem deu um empurrãozinho, e o fato dele estar ferido. Ferido e atordoado.

“É você”, não foi uma frase dita por ele ao acaso. Ali, ele a reconhece como sua contraparte na Força. E dali, a jornada começa. Finalmente com uma mulher no centro da ação, destemida tal quanto Leia, e com as habilidades mecânicas de alguém que sempre desejou construir uma nave para fugir. Ou usar aquelas que descobria abandonadas por seu planeta desértico. 

A porta de entrada para muitas meninas no mundo de Star Wars, foi Rey. Tal qual Luke simbolizou para os rapazes no passado. Mas a pressão externa começou a influenciar o storytelling. E, em Ascensão Skywalker, tudo foi entregue aos saudosos. Para quem era contra ela ter uma conexão natural com a Força, para quem não aguentava ver uma mulher no protagonismo da Galáxia. Sequer percebem que o próprio Luke se sacrificou por isso, pela chama de Rey, pelo ciclo. Ciclos se renovam, e a Jornada da Heroína é, em partes, sobre ciclos. 

Sobre abandonar a Mãe para trás, o passado, sobre uma caminhada introspectiva que é representada na belíssima cena dos espelhos ocorrida no Episódio VIII. O tal filme que criou polêmica por ousar ressurgir com conceitos já pré-estabelecidos na saga: o caminho dos Jedi não é perfeito. O método Jedi é castrador ao ponto de Anakin perder tudo que amava. De Luke não ser apenas homem, mas Lenda. Figura mítica.

Rey, contudo, é apenas Rey. Uma pessoa como todos nós. Alguém que poderia ter sido, até o fim, a representação máxima do “suas origens não importam, você pode alcançar seus objetivos”. Mas não, não. 

Apelando para um saudosismo exagerado, JJ simplesmente desfez diversas coisas do penúltimo filme. Isso, sozinho, já significa que não havia uma estrutura dorsal forte para a nova trilogia. Se a sua heroína sofre um retrocesso gigantesco no último filme, o que podemos tirar disso? Que não estavam prontos para aceitar uma mulher como salvadora. Vários pontos do último filme vazaram meses antes da estréia. Coisa que não aconteceu na produção de Johnson, por exemplo. Aliás. vale a pena comentar que George Lucas não compareceu ao tapete vermelho de Ascensão, e tem comentários positivos apenas sobre os dois primeiros episódios, apesar de comparar o VII com o IV.

E vazou porque o diretor decidiu fazer de Star Wars seu parque de diversões: famosos eram convidados para assistir cenas vitais, atores iam e vinham como bem queriam. Josh Gad soube do terceiro arco por acaso, e ele mesmo conta numa entrevista que isso nunca aconteceu com ele. De chegar no set de filmagens onde coisas chave estavam acontecendo e ninguém dar a mínima. 

A falta de estrutura da nova trilogia tirou das mulheres uma Rey que se bastava. Lembram da cena dela e Poe, onde a Jedi se apresenta, e ele sorri enquanto fala “Eu sei”? Aquilo. Aquilo bastava. Ninguém sai no meio da rua questionando seu nome, sobrenome, quem eram seus pais, avós, e quanto poder aquisitivo (em tradução moderna) eles possuem. Rey era Rey. E isso bastava.

Ela representava uma renovação na Força, e o equilíbrio final. Não importa a versão que fossem escolher: a dyad, ou onde Kylo fosse até o final como vilão. Ela e ele, juntos, eram o equilíbrio da Força. Então, teríamos duas opções: ela conseguiria trazer Ben Solo de volta, ou ela finalmente traria fim para a Primeira Ordem numa batalha entre eles. 

Mas, a partir do momento onde se revela que ela era, o tempo inteiro, do sangue de Palpatine… Isso quebra. O conceito de qualquer pessoa ser um herói é destruído. Ela só tinha esse poder, por conta de seu sangue. Por conta de um homem. A “Ascensão Skywalker” destruiu todas as conquistas daquela que tinha o direito de protagonizar sua trilogia e trazer uma nova geração de fãs para o Universo de Star Wars. Imagine uma criança crescer achando que ela pode chegar onde quiser?

O sopro de esperança que isso traz. Menino ou menina. Não importa. Pobre, rico, não importa. Essa era a mensagem de Rey: até mesmo o mais solitário dos homens, pode se transformar no herói que deseja ser em sua própria vida. Contudo, Rey Palpatine tirou sua agência. Rey Skywalker tirou sua personalidade anterior, onde a própria gostaria sim, de descobrir os pais, mas estava feliz sendo Rey. Construindo uma identidade. 

O retcon em “Ascensão Skywalker” é ofensivo ao ponto de usar até o visual dela para lhe aproximar de personagens antigos. O penteado, as roupas justas de Padmé sendo usadas pela primeira vez no corpo de Rey. E tudo é de caso pensado. Imagética é de caso pensado. Mesmo o visual dela tornou-se um token do passado. Perdemos, assim, a mensagem de que qualquer um pode ascender. A Ascensão existe. Se você tiver uma linhagem nobre. 

Não à toa, temos entrevistas de Daisy Ridley no estilo Emilia Clarke: sua reação, ao ver o final, foi sair correndo e ir direto para o carro chorar. Rey Palpatine foi um recurso explorado no último filme para agradar fãs antigos. Que esquecem: para uma saga viver, ela precisa de novos heróis. De uma nova geração. 

Agora a esperança fica no Universo das séries, e dos filmes de Taika Waititi e Patty Jenkins. Além do básico: que a Disney aprenda a conciliar seu material impresso com o mundo cinematográfico. Espectador algum é obrigado a ler os livros para entender o que se passava na cabeça de Rey, que Han Solo não queria Ben sendo treinado como Jedi, ou sobre como a ligação mental entre ela e Kylo existe desde o princípio. O resultado disso é decepção para os fãs casuais, desorganização, e uma falta de planejamento capaz de transformar por inteiro uma personagem simbólica. Rey era um novo ciclo, agora, ela é um eco do passado. 

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4 Comentários

  1. A melhor e mais clara análise que já li! E finalmente, alguém teve a coragem de citar que expectador algum é obrigado a ler os livros para entender. Afinal é o CINEMA…a parte visual que me atrai…quero ver tudo ali! Mas…que pena o que fizeram com a Rey …é doloroso. Ascensão Skywalker é uma vergonha…é imperdoável.

  2. Eu adorei a análise, concordo totalmente com ela. Acompanho Star Wars desde quando ganhei um jogo de PS1 aos 5 anos, hoje, aos 24, fiquei muito triste com o rumo que a história, não só da saga, mas da personagem, que, para mim, trouxe uma vida nova à Star Wars justamente por esse destaque feminino na obra, acabou tendo. Star Wars é uma saga que, percebemos de cara, faz uma crítica à governos totalitários, acho que, nada mais justo para o filme, essa quebra do saudosismo, de pensamentos conservadores. Ainda acredito que as próximas obras essa ideia será bem mais e melhor trabalhada.

  3. Eu AMEEEI A Ascensão Skywalker, para mim a Rey virou foda, tinha o legado de ser uma Imperatriz Sith!!! Vcs tem ideia do feminismo disso??? Ela desenvolveu uma telecinese absurdamente forte, nunca vi uma telecinese forte assim nos filmes! Para mim, ela ser uma Palpatine foi espetacular! Até porque todos os protagonistas devem ser reconhecidos por algo. Isso faz parte de todo arco de protagonista! Ela ser ninguém é terrível para um papel feminino porque todos os protagonistas homens possuem um ” valor” que tiram ele do ser ordinário, ganham valor nascendo tipo” O Escolhido”.

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