Personagens femininas não são novidade alguma no universo dos videogames— e é com muita infelicidade que podemos afirmar, também, que o estranhamento do público também é elemento antigo. A palavra estranhamento alivia e muito o cenário apocalíptico que se desenrola sempre quando uma personagem feminina ousa colocar-se no centro da narrativa. Durante muito tempo, o argumento “mulheres não fazem parte desse mundo” foi um dos preferidos para justificar o comportamento nada menos do que deplorável dos jogadores.
Contudo, a cada ano que passa, vemos o desmoronar dessas desculpas. Mulheres representam uma parcela significativa do mundo gamer, conforme diversos movimentos recentes andam nos mostrando. Apenas por exemplo, participamos ano passado do #SouMulherSouGamer, tag que perdurou o dia inteiro e trouxe diversos debates à tona— principalmente sobre como ser mulher automaticamente te coloca numa posição de insegurança numa comunidade que deveria se unificar.
Mas nem sempre o boicote vem dos jogadores, ou da má recepção dos consumidores. Algumas vezes, um número perigoso de vezes, a armadilha é hierárquica. Um dos casos mais notórios e discutidos esse ano foi o que aconteceu na Ubisoft, responsável pela franquia Assassin’s Creed. Em 2018, a empresa lançou um novo episódio em sua saga, “Odyssey”. Entre algumas críticas mistas dos fãs mais antigos quanto à mecânica do jogo, outra reclamação foi, obviamente, a mais alta: você podia jogar como uma mulher. Kassandra e Alexios eram os dois personagens disponíveis para desbravar as ilhas gregas e espartanas, mas o sucesso de Kassandra foi algo bem peculiar.
A despeito de tanto barulho feito pelos gamers que não acreditam na capacidade feminina em embainhar uma espada, aparentemente eles tinham um apoiador secreto! A própria produção executiva da Ubisoft— como foi revelado por Jason Schreier, da Bloomberg. Os dados revelados pelo jornalista envolviam uma série de relatos sobre os bastidores de “Odyssey”. O principal deles, manchete em diversos veículos, foi o de que Kassandra deveria ter sido a protagonista solo no jogo título. Para os mais perceptivos, isso explica muita coisa. A construção dos personagens é, para amenizar a situação, um pouco distinta. Nada disso é culpa dos atores e dubladores envolvidos na feitura da obra, mas sim dos executivos que decidiram mudar a história inteira de última hora.
Os desenvolvedores queriam que Kassandra fosse a única personagem jogável, mas Serge Hascöet disse que “mulheres não vendem”. Isso mesmo. “Mulheres não vendem”. Existe toda uma cadeia de problemas envolvendo essa afirmação, mas ela nauseou muitos dos apoiadores daquela que já se tornou uma das personagens mais celebradas nos jogos da última geração. Serge fazia parte do time de marketing da Ubisoft, uma equipe que já carrega outros problemas nas costas. E por “problemas nas costas”, o leitor deve entender “escândalos e acusações de assédio sexual”. Mas foi esse time que mudou todo o esforço da equipe criativa— Alexios deveria morrer logo no início do jogo, e após as novas ordens, tiveram de readaptar o roteiro por completo. E para amantes de Odyssey, esteve sempre lá, o sentimento de que Kassandra se encaixava no enredo com naturalidade, com primor em sua execução. Não desmerecendo quem prefere jogar com seu contraparte, claro, já que toda a situação muito provavelmente afetou o desenvolvimento do personagem na narrativa.
Existe em Kassandra um ar de empatia e heroísmo que conseguimos enxergar, inversamente, em Alexios como o antagonista. Após tantos problemas, era de se esperar que o público iria… Bom, reclamar de novo. Quando o primeiro trailer de Valhalla mostrou que haveria opção de jogar novamente como uma mulher, houve uma avalanche de comentários sobre como era impróprio uma mulher desempenhar a função de Viking. Felizmente, dessa vez, os planos continuaram firmes e o jogo vem ganhando boas reviews— que envolvem principalmente seus cenários espetaculares e extremo cuidado com o cenário. Os fãs mais antigos também podem se deleitar com o retorno do modo stealth mais apropriado, e parecem bem contentes com o material apresentado. Seu “metascore” é de 8.0 pelos críticos, contra 6.9 dos usuários. É com pesar que devemos sempre nos lembrar da existência de grupos que se dedicam a dar más reviews para tudo que acham não apropriado. Para o bem da verdade, costumam reclamar quando não se veem no centro.
Uma mulher como protagonista? Tudo bem, se for Lara Croft, que foi construída em cima de um modelo quadrado que a dava seios enormes. Outra desculpa comumente usada é “criem uma personagem nova”— acontece que Kassandra é nova. Ellie, de The Last of Us, também. Alloy, amada protagonista de Horizon Zero Dawn é apenas mais um exemplo que prova algo muito óbvio: protagonistas femininas não machucam narrativas, apenas egos. E elas podem vir em diversas personalidades, abandonando cada vez mais a unidimensionalidade que costumavam empregar na construção de suas personalidades. A própria Kassandra conquistou o público não por empunhar uma espada para sair por aí lutando; mas por seu coração, bravura… E bom, também por suas habilidades incríveis de batalha.
A indústria dos videogames tem um longo, enorme caminho pela frente para compensar décadas de descaso, mas os últimos dois anos nos rendeu algumas melhoras. Nos Estados Unidos e Europa, o movimento #MeToo colaborou bastante com as mudanças que andam acontecendo na Ubisoft. Executivos de alto escalão foram removidos, e esperamos que permaneçam longe. Pois além da misoginia, do assédio, havia ainda o racismo. No polêmico relatório da Bloomberg, é descrita uma situação onde em 2015, após assistirem ao trailer de Star Wars: The Force Awakens, “pessoas poderosas” chamaram John Boyega de macaco. E as mulheres que costumavam trabalhar na Ubisoft recebiam constantes ordens para “sorrir mais”— todas essas situações foram relatadas para o RH da Companhia, que fez pouco caso de tudo. Os problemas da Ubisoft não permaneciam em seus estúdios europeus, a situação era a mesma em Toronto, ou onde quer que fossem.
Executivos e equipes de marketing costumavam mandar e desmandar nos criadores das obras como bem queriam. E se voltarmos um pouco mais no tempo, em 2014, usaram a desculpa de que dava muito trabalho inserir mulheres na narrativa quando “AC Unity” foi realizado. Em “Syndicate”, ainda de acordo com o relatório, Evie e Jacob teriam o mesmo tempo em tela e importância, mas não foi isso que aconteceu no final. E não para por aí, em “Origins” evitaram a morte de um personagem masculino, Bayek, para que sua esposa Aya não ganhasse destaque. Meses depois, Hascöet e outros funcionários de altos cargos foram substituídos e a Ubisoft “se comprometeu” em mudar seu modo de operar.
Em Valhalla, você pode jogar como Eivor (mulher, ou homem) e durante a narrativa é permitido que exista a troca. Assassin’s Creed Valhalla está disponível em diversas plataformas e caso queira se aventurar no épico universo, dessa vez, a sabotagem passou longe— até onde sabemos. Caso mais notícias apareçam, será nosso dever manter os jogadores bem informados sobre o que anda acontecendo na indústria dos jogos. Ter esperanças é difícil, mas é só respirar fundo, pensar na Kassandra, e apoiar sua amiga que joga. Sua irmã que joga. Sua streamer favorita. Sua atriz de jogos predileta. Su produtora de conteúdo sobre games que te dá aquele momento de conforto semanal. #SouMulherSouGamer, e nenhuma de nós pretende abandonar o espaço dos jogos. Nos resta a esperança de que a comunidade um dia seja segura ao ponto de algo tão simples como ligar um microfone… Seja algo comum.
3 Comentários
Eu joguei acidente odyssey com ambos, kassandra e alexios, primeiro com a kassandra, e notei q a forma do alexios de agir e conversar era meio estranha, como se não coubesse no jogo.
Excelente texto, retrata bem um cenário atual!
Obrigada, Rodrigo!