O Marvel 616 é uma antologia documental disponível no Disney+ que explora a Marvel Comics através de vieses culturais, sociais e históricos. Cada episódio é focado em um tema específico como o Homem Aranha japonês, cosplays, brinquedos e, claro, representatividade feminina. Este último, tema do segundo episódio, vai à fundo na história da publicação de quadrinhos norte-americanos e conta toda a trajetória das mulheres dentro e fora da Casa das Ideias.
Pioneiras que a história escolheu esquecer
O documentário inicia na década de 40 e Trina Robbins afirma que todas as garotas liam quadrinhos. Na época existiam cerca de 70 milhões de leitores, o que representava metade da população, de ambos os gêneros. Durante a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos ficaram extremamente dependentes do trabalho das mulheres e, nos quadrinhos, isso não foi diferente. Nomes como Hilda Terry, Violet Barclay, Fanny Y. Cory, Zelda “Jackie” Ormes e Fran Hopper foram esquecidas simplesmente porque, segundo Robbins, quando “homens escrevem sobre quadrinhos eles só querem falar de Stan Lee, Jack Kirby e Hulk”. Inclusive, a Timely Comics, editora que deu início à Marvel, publicava dezena de revistas com mulheres protagonistas.
O momento de ruptura
Mas o que aconteceu que essa produção e liberdade acabou? Simples, a censura. Em 1954 e 1955 a indústria dos quadrinhos norte-americanos colapsou porque o Congresso começou a discutir acaloradamente como os materiais eram perigosos e faziam mal para crianças. Nessa época criou-se o Comics Code Authority – no qual as histórias que estavam dentro da análise moral eram publicadas com um selo de aprovação – e o número de leitores caiu pela metade. Foi quando as editoras tiveram que que escolher títulos com mais chances de sucesso e decidiram focar em um público demográfico, os escolhidos foram os meninos jovens e adolescentes. Ocorreu o boom de super-heróis que hoje conhecemos como Era de Prata e os outros foram sendo esquecidos.
As mulheres “simbólicas”
Jo Duffy fala o quanto era natural para ela ler quadrinhos, mesmo suas amigas dizendo para ela conversar com seus namorados sobre isso, ela afirma que “não me ocorreu, mesmo quando entrei no negócio, que era uma área em que quase nenhum dos créditos de criador era de garotas. Havia uma mulher simbólica aqui, a namorada de alguém lá, a esposa de alguém ali, mas mulheres não estavam fazendo isso.”
Com o foco voltado totalmente para o público masculino, era difícil encontrar personagens femininas com profundidade. Em sua maioria, elas serviam como suporte para o homem da história e deviam sempre ser animadas, simpáticas e otimistas. Além, é claro, do olhar misógino que geralmente ocorria sob elas.
Jo Steinberg era a “secretária da Marvel” e foi uma dessas mulheres simbólicas. Ela trabalhava junto com Stan Lee e recebia e lia as cartas dos fãs. Nessa mesma época, por volta dos anos 60, Marie Severin trabalhava na editora e mesmo sendo uma artista incrível fazia apenas produção de arte (apagando e consertando artes) ao invés de estar desenhando uma série regular. Ela só conseguiu algum destaque quando uma revista quis fazer uma matéria desenhada e todos os outros artistas estavam ocupados. Ela acabou desenhando praticamente todos os grandes personagens da editora e June Brigman afirma que ela provavelmente fez muitos trabalhos pelos quais nunca foi creditada.
Nos anos 80 foi quando a distribuição passou para lojas especializadas, as chamadas comic shops. Nesse momento foi possível fidelizar e cultivar um público mais específico. Trina Robbins tentou escrever histórias como Meet Misty, mas os lojistas não pediam as revistas e eles receberam dezenas de cartas de garotas falando como não conseguiam encontrar os exemplares.
Nessa época, Annie Nocenti conta que os escritórios já estavam mais “abertos” para a presença feminina, mas admite que não estava interessada em trazer mulheres para ler suas histórias e que ficava “tentando escrever como homens”.
Louise Simonson conta que, mesmo dividindo suas funções na Marvel com ser mãe, um funcionário qualquer disse que ela sempre chegava na hora, que seus quadrinhos davam muito mais dinheiros que os outros e ela entregava mais página que os outros, para ela continuar fazendo o que estava fazendo. Isso mostra o quanto, até hoje, as mulheres precisam não só acumular funções, como ter uma produção muito acima da média masculina para serem reconhecidas.
No início dos anos 90 o surgimento das graphic novels e a possiblidade de vende-las em livrarias, fez com o que o público potencial aumentasse, inclusive com as editoras prestando atenção às mulheres que sempre estiveram ali, mas estavam sendo ignoradas até então.
A importância da Capitã Marvel
É claro que com o filme da Capitã Marvel o documentário não poderia deixaria de puxar para o lado da personagem, mas quando analisamos a história contada – inclusive no que ela resultou – é difícil não admitir a importância de Carol Danvers para a representatividade dentro da editora.
Miss Marvel começou exatamente como qualquer outra mulher em histórias escritas por homens: como personagem secundário e ajudante do Capitão Marvel. Carol entra para a Força Aérea porque seu pai só tem dinheiro para pagar a faculdade de dois de seus filhos – homens, olhá só!-, afinal ela tinha “mais chances de se casar”. Apesar de ter um quê de rebeldia, ela sempre precisa se provar frente aos homens que aparecem em sua frente (aqui não estamos falando do filme, mas quem lembra da frase que Danvers fala para Yon-Rogg no final?), mas ainda assim a personagem precisava de algo mais.
Esse algo mais ficou claro quando Kelly Sue DeConnick assumiu o título e quis fazer uma personagem que sempre se esforçava e ultrapassava barreiras (Higher, Further, Faster, baby!). A decisão de mudar seu título para Capitã e fazê-la usar calças partiu da própria Marvel, mas isso não quer dizer que foi tudo de comum acordo.
Capitã Marvel foi o primeiro título de uma personagem mulher, liderado por mulheres. Com Sana Amanat – hoje VP da Marvel Enterteinment – como sua editora, pode-se dizer que elas fizeram história em manter em uma passagem a frase “qualquer garota voa”, quando alguns envolvidos preferiam “qualquer criança”. Sobre o episódio, Sana conta que falou “o foco agora é as mulheres, porque não focamos em mulheres há muito tempo ou da maneira que deveríamos”.
O título de Carol Danvers foi excelente em popularidade e público e as fantasias da personagem começaram a crescer cada vez mais pelas feiras mundo à fora. Foi isso que fez a Marvel perceber que havia um público feminino prestando atenção e, desta vez, elas tinham uma personagem para elas. Foi o que inspirou a editora a dar um passo além.
A personagem mais popular dos quadrinhos da Marvel é muçulmana
Sana Amanat é uma mulher muçulmana que cresceu nos Estados Unidos e percebeu que era diferente quando após o 11 de Setembro começaram a apontar para ela. A partir disso ela sempre quis fazer algo para ativamente mudar a percepção que o ocidente tem dos muçulmanos. No início de seu trabalho em editoras ela sempre foi criticada por não ter crescido lendo quadrinhos e não ter a “cultura de quadrinhos”. Quando recebeu o convite da Marvel ela ficou reticente, mas Dan Buckley – atual presidente da empresa e antigo editor – falou que era justamente por isso que a queria, por ela poder oferecer algo completamente diferente do que os homens de lá estavam fazendo nos últimos 15 anos.
Ela foi a principal inspiração para Kamala Khan, a atual Ms Marvel, e conta que pensou que ninguém se interessaria pelo conceito. Quando G. Willow Wilson foi convidada para escrever a história, ela estava certa de que estavam brincando com ela e ficou com receio da recepção que uma personagem muçulmana, com uma roteirista e uma editora muçulmana teria. Ms Marvel foi um sucesso antes mesmo de estrear e a sua primeira edição teve seis reimpressões!
Tanto Sana quanto G. Willow Wilson duvidaram de sua capacidade de alguma forma. Seja para ser editora de quadrinhos ou para contar uma história tão ousada. Nós mulheres costumeiramente não nos sentimos capacitadas e duvidamos de nós mesmas, porque em determinado momento a sociedade nos ensinou que não é nosso lugar. Mas é sim nosso lugar e eles nos pertence!
A representatividade não para no gênero
Kamala Khan é hoje uma das personagens mais populares da Marvel Comics e foi a que abriu completamente a porta de possibilidades para personagens e artistas dentro da editora. Coração de Ferro, Moon Girl, Gaviã Arqueira, Marvel Rising, Miss América e Shuri são só algumas das que ganharam mais destaque depois que apareceu a inumana de Nova Jersey que pode parecer com qualquer pessoa mas escolha ser ela mesma.
Não por acaso, das personagens citadas quatro delas são não-brancas. Afinal, esse episódio do Marvel 616 também é permeado por entrevistas com a artista Nilah Magruder – a primeira mulher negra a escrever para Marvel, após 70 anos de editora – que conta, em paralelo com a história das mulheres na editora, sua vivência e crescimento como artista, inclusive trazendo temas como a tendência de artistas negros a desenhar prioritariamente personagens brancos mesmo em suas histórias autorais. E é de Nilah a frase ideal para finalizar este texto:
“Acho que essa conversa agora sobre representatividade, sobre se ver numa história, fez algo incrível para quadrinhos e para as mulheres leitoras. Mas ainda podemos fazer mais para ver mais deficiência, para ver mais orgulho lgbtqia+ nesses quadrinhos, mais personagens e escritores asiáticos e latinos. Por que se contentar com pouco quando se pode abrir as comportas?”