JOKER: saúde mental, a violência e a construção de um vilão.

Isso não vai ser uma simples resenha crítica. Eu tenho MUITO o que falar sobre Joker. Vamos começar pelo começo: alguns avisos básicos.

  1. Se você não viu o filme e se importa com spoilers, NÃO LEIA. Guarde essa resenha e leia depois do filme, porque vai ter MUITO spoiler.
  2. Se você tem gatilho com violência e conteúdo gráfico, não leia nem veja o filme. ele é pertubador.
  3. Se você em algum momento vendo o filme se identificou com alguma ideia de Arthur Fleck, por favor, procure ajuda. No Brasil temos locais que possuem atendimento gratuito, procure o da sua cidade.
  4. Algumas das análises criminológicas que fiz sobre foram retiradas do livro SERIAL KILLERS: A ANATOMIA DO MAL, de Harold Schechter, estudioso especializado em serial killers e criminologia.
Robert De Niro é Murray Franklin, um apresentador de um talk show no formato de standup comedy; o personagem faz referência ao personagem de De Niro em Rei da Comédia

Agora, a resenha de fato. Iniciando pelos aspectos técnicos e cinematográficos, que não irei me alongar, porque realmente tenho MUITO o que falar sobre esse filme e sobre toda a discussão ao redor dele, irei primeiramente citar duas resenhas que me agradaram muito e acredito que resume tudo que eu senti nesse filme, a primeira é a do canal Meus 2 Centavos e a segunda a da Sana (@heroinadolixo), que assim como eu, é muito fã do universo da DC e resume muito meu sentimento como fã desse vasto mundo de heróis. No quesito técnico, primeiramente gostaria de parabenizar a fotografia esverdeada desse filme, que trouxe uma das, senão a melhor, representação de Gotham que eu já vi. A cidade caótica, cheia de doenças e ratos, o nexo com Nova York (e muitas cidades brasileiras também), e toda a ideia de que a cidade está suja, à beira do colapso, como um verdadeiro barril de pólvora.

Logo após sair do filme, parei para comer em um restaurante e o noticiário ligado não era tão divergente de Gotham. Algo que também agradou enormemente foi o fato de o filme não se apressar. Muitos filmes do gênero, seja herói ou vilão, têm um primeiro ato rápido, ansioso para chegar logo no status final do personagem, nesse caso, o Coringa. Porém esse filme reformula o gênero fazendo um roteiro sob medida para Phoenix, e revoluciona a narrativa, tomando o tempo necessário para abordar todos os distúrbios mentais do protagonista e construindo sua evolução (ou involução) de forma empírica.

Apesar de já conhecermos esse vilão icônico de tantos filmes, quadrinhos e outras mídias, o filme toma o seu tempo e diz: espera que a gente vai chegar lá. Ele vai gradativamente mostrando o motivo de Arthur Fleck chegar ao surto final e finalmente abraçar sua loucura de uma forma tão distorcida e doentia como faz, finalmente chegando à sua identidade que conhecemos de Coringa. Não é algo apressado do tipo ‘eu sou louco e do mal e portanto pintarei minha cara e ponto final”. Fleck tenta – por mais distorcido que seja – justificar seus atos (inclusive o discurso do apresentador Murray Franklin pouco antes de seu assassinato é uma prova disso). Porém, não há nada que justifique as atrocidades que ele comete, e o próprio filme deixa isso claro. É um estudo psicológico sensacional por parte do roteiro e uma das melhores construções de personagem que eu já vi. Ele dá uma aula de como construir o colapso mental de uma mente distorcida. 

Além disso, a trilha sonora do filme é perfeita e espero muito que seja indicada ao Oscar, fazendo aí, no meu ranking pessoal, rivalidade com US (NÓS) do diretor Jordan Peele, que também é um dos meus favoritos para levar a estatueta de trilha.

Assim, após essa breve introdução, gostaria de focar nos aspectos do roteiro mesmo, que está causando tantas polêmicas.

O filme é basicamente um monólogo do personagem de Joaquin Phoenix, que entrega uma atuação teatral impecável (inclusive daria para adaptar para o palco), uma imersão profunda em sua mente distorcida que acredita que a sociedade lhe deve algo, e portanto comete todas essas atrocidades já citadas, começando por perseguir Sophie Dumond (Zazie Beetz) até o assassinato de um apresentador ao vivo.

Agora, o discurso apolítico de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix). Vivemos hoje na época da pós política. O discurso do protagonista de não sou político têm um link muito real com a atualidade e até mesmo com a nossa história de despolitização, que é algo MUITO perigoso. Aqui, não irei entrar em detalhes, mas se você parar para pensar, existem vários políticos no cenário nacional e internacional que dizem que não são políticos, não são de esquerda nem de direita. Isso é algo que Sabrina Fernandes, doutora em sociologia, estuda e explica nessa série de vídeos aqui. Vale a pena checar. Não irei entrar em detalhes justamente por conta do fato de que a Sabrina já diz tudo que eu gostaria de falar. Lembre da quantidade de vezes que Fleck repete que não é político. Agora, voltando para Coringa.

Existe violência em todo filme de herói. Vingadores Ultimato possui cenas de decapitação, Guerra Infinita o Loki é morto estrangulado, em vários filmes dos vingadores a viúva negra apresenta várias cenas de luta coreografadas belamente, Demolidor é uma das melhores coreografias de luta já feitas, etc. E mesmo assim, quando Thor mira na cabeça de Thanos e a corta com facilidade, ninguém se choca, pelo contrário. Assim em todas as outras cenas citadas (menos a do Loki, aí a gente chora). Porém, em Joker, as cenas de violência são dolorosas de serem assistidas, e há um motivo para isso. A sensação que eu senti assistindo Coringa foi uma sensação única, o que derruba a tese de que o filme glorifica a violência. Muito o oposto disso, o filme traz cenas grotescas desde o assassinato do metrô, que o personagem atira nas vítimas até mesmo após elas estarem mortas e depois, não mostra nenhum ressentimento, o oposto disso ele vai dançar e comemorar. E causa muito, MUITO, desconforto. Isso mostra a escolha da direção de deixar claro como o sol que não quer glorificar e justificar essas atitudes. Nada, repito, NADA, justifica os crimes do Coringa. Ele é um vilão psicopata e sádico. Repito: VILÃO. O fato de o filme ser do ponto de vista dele é uma escolha genial de narrativa e estudo psicológico não anula a gravidade dos crimes. É importante ressaltar isso, principalmente pelas polêmicas que o filme se encontra. A própria Warner negou essa tese de que o filme era para glorificar crimes.

O desconforto que sentimos assistindo os assassinatos de Fleck é claramente uma escolha importante da direção, mostrando a distorção da mente do protagonista psicopata. Filmes como Coringa, O silêncio dos inocentes e a espetacular série Hannibal, Laranja Mecânica, dentre outros, não são filmes que glorificam ou justificam a violência. Eles apenas a retratam como existem e estudam esses personagens distorcidos. Contar uma narrativa não quer dizer que você concorde com ela. Assim, recomendo até que assistam Mindhunter e Ted Bundy Tapes, duas séries originais Netflix que abordam psicopatas da vida real. Confira nosso vídeo sobre o Bundy aqui. O próprio diálogo que já citei aqui do protagonista com Murray Franklin deixa isso muito evidente quando Franklin diz: Deixa de autopiedade, deixa de justificativas. Você matou inocentes, isso não é justificável. O Coringa não acredita nisso. Inclusive em HQs clássicas do Batman vemos isso, e é preocupante que seja preciso ressaltar, mostra o quão doente nossa sociedade está, e jogar a conta disso em um filme não é nada responsável. A nossa sociedade está doente e nós precisamos entender como mudar isso, e não simplesmente falar de filmes e video games. Isso é simplesmente transferir culpabilidade e evitar debates sobre masculinidade tóxica, sobre sistema punitivo e desigualdade social, discussões sobre armamento. Se Fleck não tivesse acesso à aquela arma que tinha, ele não teria começado. Se as instituições que cuidam dos transtornos mentais fosse de fato tratado como prioridade na nossa sociedade e como uma pauta de saúde pública, ao invés de marginalizar, algo assim poderia ter sido evitado. Vários serial killers na história eram fãs de filmes violentos, mas pessoas boas e amorosas também eram, assim como vários serial killers eram leitores assíduos da Bíblia. O problema é muito mais embaixo. É sistêmico.

Finalmente, gostaria de citar duas partes que – agora fala o lado GEEK – como fã do universo Batman me fizeram gritar dentro do cinema. A primeira, é o assassinato os Wayne. O filme mostra a identidade do Coringa, e como ele pode sim funcionar sem o Batman, diferente do que pensam. Porém, ainda consegue conectar ambas as histórias sem necessariamente causar codependência. E isso é simplesmente genial porque conecta mais ainda a relação do Joker e Bruce Wayne, o que me leva à segunda referência e importante explicação sobre ainda a questão da violência no filme. Em uma das HQs mais citadas quando se trata do personagem coringa, BATMAN: A PIADA MORTAL, de Alan Moore, há uma parte em que Bruce Wayne e o antigo Arthur Fleck – Coringa – conversam e falam sobre a questão. Na ocasião, o vilão diz:

Basta um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático.

Coringa, Alan Moore, Batman: The Killing Joke (1988).
Essa é a frase que ficou extremamente marcante em relação ao quadrinho junto à piada final, que causa discussões sobre o desfecho até hoje. Inclusive, a frase é citada em Coringa (2019), no momento que o protagonista invade o apartamento da vizinha por qual nutre uma obsessão e chegou a fantasiar/alucinar que tinha uma relação íntima:
 ‘Eu tive um dia ruim.”
Tanto Bruce Wayne quanto Arthur Fleck tiveram dias ruins. Porém, Batman usa esse dia ruim para consertar a violência de Gotham se tornando um herói, cooperando com Jim Gordon, por exemplo. Enquanto isso, o coringa optou pelo caminho doentio de transferir a culpa na sociedade e dizer: vocês me devem algo. Ele está completamente errado.
O Demolidor, teve um dia ruim. Ele não se tornou um assassino sádico. Mais claro ainda, o homem aranha, muito tempo o carro chefe da Marvel, teve um dia ruim. Após a morte do tio Ben, ele não se tornou um assassino, pelo contrário, se tornou um símbolo na cultura pop de herói. O Joker tenta provar seu ponto, mas ele está completamente errado.
Em suma, Coringa é um filme genial e um dos melhores estudos psicológicos do que tornaria um homem real um vilão doentio e sádico, um dos maiores da cultura pop. Espero que garanta várias estatuetas, começando pelo ator principal, Joaquin Phoenix, que entrega o papel da sua carreira. E que venham as estatuetas!
Filmaço.
NOTA: 10/10

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