Quem diria, que depois de oito filmes do Cavaleiro das Trevas, teríamos mais um. Pois é e não só tivemos, como esperamos tempo demais para que finalmente víssemos o verdadeiro Batman que a gente – até então – conhecia somente nos quadrinhos. Em The Batman, você vê uma página de Batman: Ano Um do Frank Miller sendo retratada em formato de live-action pelo glorioso diretor e roteirista Matt Reeves junto com sua equipe.
Em época onde a Warner Bros nos trouxe Coringa de Joaquin Phoenix como um filme mais “independente” das linhas de super-heróis que conhecemos e garantiu grande parte do sucesso que o estúdio tem hoje, The Batman vai nessa linha. Mas de qual forma?
Logo no início do filme, já entendemos o que Matt Reeves e Pete Craig queriam passar nas telonas: um Batman sendo retratado como detetive num filme noir e mais do que isso, um Batman cujo as referências não são daquelas que já estamos cansados de saber tanto quesito história de origem quanto a forma que ele trabalha. Mas antes…
O que é um filme noir?
Noir, para quem não sabe, significa em francês “escuro” e é um gênero do cinema com histórias cheias de suspense no estilo dos anos 40 – 50. Nesse gênero, há vários elementos que compõe ele:
- Citações com passagens poéticas ou dramáticas
- Flashbacks que caracterizam os personagens assombrados no passado
- As tramas traziam uma cidade mais caótica, corrompida e perigosa. Cenas a noite e chuva eram a assinatura
- Problemas sociais eram recorrentes: temas com policiais, crimes, investigações, álcool, cigarro.
- O herói poderia ser até violento e tinha objetivos mais cruéis. Se apaixonavam pelas vilãs conhecidas como Femme Fatales, mulheres que abusam da sensualidade para manipular os homens.
- A iluminação normalmente se dava por longas sombras lineares, onde luzes eram projetadas de janelas, escadas e até prisão.
- Trazia o “clima perturbador” em técnicas visuais, um enquadramento torto ou um close-up bem fechado.
Trazendo isso para vocês fica ainda mais fácil de entender o filme como um todo, não só como desenvolvimento da história, mas a proposta de um enquadramento de câmera, a fotografia ser densa e ter alguns pontos de luz, uma trilha sonora que traz aquele toque de investigação e a linha de roteiro que ambos os roteiristas queriam trazer em conjunto com o material base referência – os quadrinhos do Batman: Ano Um de Frank Miller e Batman: The Long Halloween de Jeph Loeb sendo os principais.
Em The Batman, Matt Reeves junto com o co-roteirista Peter Craig trazem um jovem Bruce como um vigilante das ruas em seu segundo ano, ou seja, ele não é o que podemos intitular como “Cavaleiro das Trevas”, ainda. Por estar no seu segundo ano de vigilância nas ruas de Gotham, ele não é experiente e comete muitos erros; é instável emocionalmente; seus apetrechos ainda não são tão “reforçados” e parte da sua investigação é mais emocional do que racional pelo legado da família Wayne.
A história é muito, mas muito densa envolvendo não só o plano arquitetônico do vilão principal Charada com a elite de Gotham – o prefeito e as famílias da alta sociedade – mas com várias outras que acabam se entrelaçando em uma história só e acaba sendo o filme onde o Batman é o investigador do plano do Charada e também é o próprio investigador da sua história nas entrelinhas, como um jogo de gato e rato. Ele só não sabia que seria o rato também nesse plano.
Com uma abordagem totalmente diferente do que já vimos nos filmes – e aqui não digo de modo exagerado, pois é realmente diferente do que já vimos sobre o Batman – o roteiro é bem coeso, trazendo uma história muito rica em detalhes, mais “pé no chão” sem aquilo de elementos fantasiosos e com grande influência aos filmes de gênero noir. Inclusive por ser um filme mais “pé no chão”, você acaba parando para pensar que qualquer um em sua volta pode ser o Batman, ou a Selina, ou o Charada e essa linha de raciocínio que eles trabalharam foi ótima, pois traz uma aceitação maior para a história que foi construída. Outros elementos dão uma complementada não só no personagem principal, mas nos outros personagens que o permeiam, o que é excelente, pois o desenvolvimento não fica somente em um personagem, mas em outros.
São 3 horas de filme que faz muita gente ter um certo receio antes de assistir para ver saber se a história se arrasta demais ou se realmente cumpre com esse tempo que raramente vimos. Posso dizer que ele é um meio termo: ele cumpre sim com o que foi proposto, com um enredo tendo o Batman sendo o detetive. Ele é um enredo fechado e rico em detalhes, sem deixar nenhuma ponta solta, porém, no início ele dá uma demorada para engrenadar. Entre monólogos e apresentações dos personagens, o filme engrena com um ponto chave entre dois personagens principais: Batman e Selina Kyle. Mesmo com uma demora para engatar a largada, isso não deixa de atrapalhar o brilho que o filme é (ou a escuridão? rs).
O roteiro dá um desenvolvimento muito bom em todos os personagens – claro, tendo um toque maior em seu personagem principal, Matt Reeves e Peter Craig trazem realmente a essência de cada personagem dos quadrinhos, sem exageros nenhum. Como havia mencionado, o material base principal desse filme são os quadrinhos do Batman: Ano Um e The Long Halloween, mas um deles é o principal dos principais: o Batman: Ano Um de Frank Miller, quando falamos de Batman/Bruce Wayne e Mulher-Gato/Selina Kyle.
No filme – e nos quadrinhos – vemos a psicologia do Batman/Bruce Wayne, com toques mais sombrios e dramáticos em sua história. Vemos as duas personas: a do Bruce como do Batman contando com a ajuda da polícia (Gordon) durante investigação e a do Bruce como um órfão recluso que não está sabendo lidar ainda com a morte de seus pais, entre uma jornada racional e emocional, onde um Bruce está mais brutal, sombrio e totalmente perturbado, com várias cenas de lutas bem violentas mostrando um lado do Batman que não sabe (ainda) controlar o seu emocional. Temos um plot twist totalmente inédito na história do Bruce, envolvendo a morte dos pais e acredite, é muito bem trabalhado e bem chocante. Robert Pattinson brilha como nunca e vai surpreender a todos – fãs e haters – com sua performance. O papel de Robert como Edward em Crepúsculo teve um novo ressignificado, com ele fazendo sim parte desse desenvolvimento do vampiro para o Homem-Morcego.
Já a Mulher-Gato é o contraposto do Batman, com um coração mais doce e inocente, sendo uma jovem trabalhadora que adota gatos de rua e que protege quem está ao seu redor, principalmente inocentes de Gotham. Por ser uma personagem muito querida ao lado de Batman, ela aqui não tem um desenvolvimento muito grande, mas acredito que eles guardarão mais para a série solo. Do que vemos da Selina, os elementos que fazem da personagem ser o que ela é estão lá e até mais além, com um plot twist inédito que muitos não conhecem sobre ela e acredito que poucos sabem. Há outro fato na vida pessoal de Selina que também não foi retratado nas telonas e eles dão muita margem que aquilo que vemos, é realmente o que imaginávamos e nos quadrinhos não é surpresa para ninguém (Catwoman #39, 2015).
Zoe Kravitz não poderia ser a melhor escolha para o papel da gatuna, não só pela semelhança visual, mas como a entrega que ela fez indo desde suas feições até pela cenas de luta e o jeito do andar, como uma gata. Sobre ela ter sido a melhor Mulher-Gato: se nós basearmos em relação aos quadrinhos, ela sim foi a melhor interpretação dela. Agora, se formos compararmos aos filmes que a personagem já foi interpretada, a Mulher-Gato de Michelle Pfeiffer segue no páreo, mas isso não significa que ela nunca será, pelo contrário: a Mulher-Gato de Zoe tem tudo para ser a melhor de todas em todas as mídias.
E aproveitando para falar sobre eles serem lados opostos que se completam, mesmo que o gênero do filme seja mais alinhado com crimes, investigações e drama, ainda há espaço para o romance. Para quem muito aguardava o BatCat, ele é mais real do que nunca e é muito bem trabalhado, deixando mesmo que em poucas cenas, sementinhas que nós sabemos como funciona: os dois se gostam, mas cada um deles tem um propósito diferente. Como nós vemos um jovem Bruce atuando em seu segundo ano como vigilante e uma Selina inocente que busca em seu destino ser uma heroína ou anti-heroína, isso é ótimo para que num possível reencontro – que tenho certeza que teremos – ambos estão mais maduros e experientes da caminhada de cada um.
“(…) The Bat and The Cat” – Selina Kyle, The Batman. Warner Bros/Divulgação
James Gordon não é ainda o Comissário Gordon, mas a de uma versão mais jovem, que ainda é Tenente. Formando uma dupla imparável com o Batman para investigar os crimes do Charada, o personagem completa um trio investigativo onde cada um faz da sua própria maneira. Gordon, mesmo indo contra os seus colegas policias corruptos, ele ainda acredita na honestidade que Gotham possa oferecer e ajuda Batman nessa luta. E para aqueles que reclamaram da escolha do ator Jeffrey Wright como Comissário Gordon, por conta da mudança de cor, tal alteração não afetou em nada o personagem (mesmo que tenha um peso) e com uma entrega maravilhosa Jeffrey calou, e vai calar, muitas bocas por aí. Para quem o conhece desde seus trabalhos com a série Westworld, sabe que o ator entrega interpretações incríveis com os personagens que lhe oferecem, e aqui nada muda. Inclusive uma menção super honrosa dele que é subestimado ao público, infelizmente.
Charada está aqui como um serial killer e não aquele que ama um quebra-cabeças e se fantasia com um terno verde cheio de interrogações. Ele é arquitetônico, trabalha sorrateiro e com sede de vingança – algo que ele usa a própria frase do personagem-título em benefício dele: “Eu sou a Vingança”. Aqui não há tempo de risadas com o Charada: políticos e famílias da alta sociedade são seus alvos e a perturbação é a sua melhor amiga. Perdido, ele de certa forma é o vigilante que quer reverter o quadro de Gotham como uma cidade corrupta aos olhos dos “cidadãos de bem”. “SEM MAIS MENTIRAS” é o lema que ele traz em todos os assassinatos da sua própria justiça à aqueles renegados pela sociedade, incluindo ele mesmo. Paul Dano é excelente nessa nova roupagem do Charada e dá muito para “sentir” pelos maneirismos que o ator faz quando aparece ou como Charada ou como Edward. Para quem já conhece o ator desde o filme Os Suspeitos e passou até raiva com o personagem, aqui você fica tenso com o Charada, e muito tenso.
O Pinguim aqui não é grande chefão do crime, com sua cartola, nariz pontudo, monóculo e fumante. Ele é o braço direito de Carmine Falcone e dono do clube Iceberg, um lugar onde o submundo de Gotham prevalece. Há raros momentos onde Oz solta uma risadinha ao espectador, mas nada exagerado. Ambicioso, o personagem possui marcas em seu rosto – que possivelmente são de acertos de contas a mando do seu chefe – e também do seu fatídico andar. O que não foi desenvolvido do personagem aqui, veremos mais em sua série solo pela HBO Max. Colin Farrel, você nem imagina que seja ele por debaixo de tanta maquiagem – o que assusta, pois o trabalho da equipe de design de cabelo e maquiagem foi impecável. Claro, há algumas cenas que você percebe que é obviamente uma maquiagem, mas nada que estrague o choque de que tudo aquilo é maquiagem. O ator traz uma interpretação mais sarcástica do personagem, algo que não é muito diferente do que já vimos na personalidade de Oz.
Sobre Carmine Falcone, é o chefe do crime de Gotham e também da cidade por 20 anos. Carmine é um personagem que ainda não havia sido retratado em filme e tem uma história obscura com os pais de Bruce Wayne e com outros personagens do filme, vivendo sob a fama do medo e de ser o gangster mais perigoso de Gotham. O ator John Turturro é quem interpreta o personagem e é muito interessante quando temos uma visão deturbada de que atores conhecidos mais pelo gênero de comédia, deverão fazer apenas filmes do gênero e não de outros. Turturro traz a arrogância e vulnerabilidade que Falcone expressa com uma interpretação muito bem feita, mesmo.
Alfred que conhecemos mais como mordomo, aqui ele não é só o mordomo: é um ex-agente do MI6 que foi contratado pelos Wayne para a segurança da família. A partir da morte dos pais de Bruce, Alfred tornou-se além do segurança, o mordomo do jovem que tinha acabado de se tornar órfão. Com marcas físicas e emocionais, a nova versão do Alfred não deixa de ser abaixo do que foi Jeremy Irons em Liga da Justiça. Andy Serkis, quem diria mais um comic book para o currículo. O Alfred está ali, entre os personagens em destaque da sua carreira e mais um trabalho em conjunto com Matt Reeves.
Agora sobre os outros elementos que mais me destacaram, foi o conjunto de direção de câmera + fotografia + trilha sonora. Esse foi o trio que mais fiquei maluca de paixão durante todo o filme. A direção que Matt Reeves captava a angustia ou o desespero dos personagens em close-ups; uma cena longa de perseguição super bem dirigida entre Batman e Pinguim – e ainda arrisco a dizer que foi a cena mais bem dirigida e mais bonita que já vi em um filme, principalmente com a apresentação do batmóvel nela, com as cenas de lutas mais bem coreografadas, captando o estilo de luta de cada um. A fotografia espetacular que Greig Fraser trouxe é carregada de investigação, ao mesmo tempo do peso da escuridão do personagem e também do próprio gênero noir. A trilha Sonora sabemos que ela é super importante para as histórias e aqui nada mudou. Michael Giacchino renova trazendo temas mais densos, mais acelerados e mais alinhados com o que os personagens foram propostos pelo roteiro. Há até referências a outras versões dos personagens principais, como da Mulher-Gato, que teve uma pegada da trilha da Mulher-Gato da Michelle Pfeiffer.
Divulgação/Warner Bros
Algo que pode passar despercebido, mas que é muito importante, é sobre a retratação de Gotham, mas a verdadeira Gotham City. Matt Reeves escolher esse gênero noir não foi à toa e a cidade é um exemplo claro dessa escolha. Não vemos uma cidade limpa, com total segurança nas ruas, sem drogas, brigas de gangues: vemos o contrário disso e ainda muito pior, com chefes dos crimes comandando a cidade, onde o submundo de Gotham está presente nos clubes, onde “cidadãos de bem” são policiais, promotores corruptos que trabalham para os criminosos. Uma cidade suja, sombria, onde o uso de drogas está em alta e sem os cidadãos terem qualquer segurança.
De modo geral, The Batman tem um caminho promissor no futuro do estúdio com essa pegada noir e puxada mais para uma história “pé-no-chão”, mais real e nada fantasiosa, como já vimos com Coringa de Joaquin. Com um roteiro denso trazendo questões não só sociais, como também mais psicológicas dos personagens, cenas de ação implacáveis e uma combinação de elenco, fotografia, trilha sonora e design de produção muito bem alinhados, faz The Batman trazer um terreno já muito bem preparado não só para a sequência, mas para as novas séries solo desse Universo que Reeves está iniciando.
Com certeza – e sem exageros – Reeves foi o diretor que a Warner/DC precisava depois de muitos anos, principalmente em tomar como responsabilidade a história de um dos pilares do estúdio. A única coisa que eu pediria de conselho ao Matt Reeves, era só dar uma encurtada no tempo de duração na sequência, rs.
Uma opinião super pessoal da autora: eu estava num misto entre ficar muito animada só pelos trailers e pelos conteúdos que foram divulgados, mas ao mesmo tempo com medo de quebrar a cara. Mas ao assistir The Batman, o medo sumiu e a alegria tomou conta e ainda elevou ainda mais do que já estava esperando ser.
The Batman estreia na próxima quinta-feira, dia 3, nos cinemas.