Neste mês de abril chega às prateleiras a prometida última produção da longa carreira do escritor Alan Moore: Liga Extraordinária A Tempestade, pela Editora Devir. O volume encerra as aventuras da liga formada por marcantes personagens da cultura pop, literatura e história e vem sendo desenvolvida desde 1999, juntamente com o desenhista Kevin O’Neill. Ambos anunciaram suas aposentadorias do mundo dos quadrinhos após a conclusão da obra.
ATENÇÃO: Este texto contém alguns spoilers de A Saga do Monstro do Pântano, Watchmen, Liga Extraordinária, V de Vingança, Promethea e Lost Girls
Com uma carreira que se iniciou no fim dos anos 1970 através de tiras para o jornal britânico Northants Post, inclusive desenhando-as, Moore não só carrega uma extensa lista de publicações, como também de polêmicas. Suas rusgas com as duas grandes majors dos quadrinhos norte-americanos (Marvel e DC Comics) são bastante conhecidas, nas quais ele inclusive se recusa a receber pelos direitos de Watchmen e V de Vingança, por exemplo, transferindo-os exclusivamente para os desenhistas Dave Gibbons e David Lloyd respectivamente (repare que nas produções audiovisuais destas, apenas os desenhistas são citados nos créditos). Mas não é apenas a sua posição firme em relação ao mercado que costuma ser assunto, é com certa periodicidade que o papel das mulheres em sua coletânea é bastante criticado.
Após cinquenta anos produzindo quadrinhos, é necessário selecionar algumas obras para uma análise mais certeira. Não por acaso focaremos nas publicadas pelas grandes editoras e, talvez, as mais discutidas: Monstro do Pântano (1982), Watchmen (1986), Liga Extraordinária (1999-2019) e Promethea (1999-2005). Essa seleção também permite uma abrangência de diferentes anos da carreira do mago.
O run de Alan Moore no Monstro do Pântano é um marco na produção de quadrinhos e não por acaso foi, juntamente com Sandman, o título responsável pela criação da hoje extinta Vertigo. Essa é uma história que merece um texto próprio, mas, basicamente, a DC Comics convidou diversos autores britânicos para escrever alguns títulos de menor relevância e com isso ganhou histórias mais profundas, reais e eternos clássicos.
No caso de Monstro do Pântano, muitos podem dizer que Abby é apenas a namorada do personagem principal, mas a verdade é que em muitas edições ela é protagonista. Não só acompanhamos aquele mundo pelos olhos dela como também entendemos a verdadeira realidade do ser que Alec virou graças aos seus atos e observações. Inclusive, o próprio protagonista só consegue se reconhecer e se entender graças a ela.
É importante lembrar que Moore é um crítico da humanidade, coloca o dedo na ferida apontando defeitos e hipocrisias. O sexo e a sexualidade fazem parte da existência humana, por isso este é um assunto frequente em seus roteiros. Neste material ele deixa de lado toda a obviedade que essa representação poderia ter em uma obra visual e traduz isso em puros sentidos e sensações. Além disso, o ato sexual tem por objetivo o crescimento e aprendizagem de ambos o personagem, algo que também vemos em Promethea.
Até aí, em ambas o sexo é consensual. O que falar sobre Watchmen e Liga Extraordinária, que apresentam estupros da única mulher de seus respectivos grupos? O que Moore faz aqui nada mais é do que cutucar a ferida e falar “isso aqui acontece, acontece com qualquer mulher e nada do que se passa antes ou depois torna isso menos absurdo”. Se em Watchmen temos Sally nos anos 80, usando roupas coladas e, posteriormente, se envolvendo com seu estuprador, em Liga Extraordinária, um vestido longo, espartilho e roupa até o pescoço não impediram que o mesmo acontecesse com Mina, mais de século antes. O importante é que nenhuma das personagens se desenvolve como consequência disso, pelo contrário. Mina é extremamente empoderada desde o começo e toma as rédeas da equipe majoritariamente masculina a todo momento. Já Sally não deixa de falar o que pensa e agir exatamente como quer, e mesmo que acabe tendo uma filha com seu violentador, em nenhum momento o relacionamento é romantizado ou mesmo mostrado explicitamente.
Se nessas obras lidamos diretamente com sexo, em V de Vingança temos uma violência psicologia e física muito grande em Evey, que sofre nas mãos da polícia antes de ser resgatada por V. Mas, de novo, a evolução da personagem é apesar do sofrimento e não em favor dele. Evey, mesmo fragilizada, entra em rota de colisão com V – que, aliás, não temos certeza de seu sexo, um dos diversos pontos de crítica social da hq – e acaba se tornando não só sua própria salvadora, mas também daquele mundo ao assumir a identidade do rebelde/psicopata.
Alan Moore definitivamente é um dos melhores, se não o melhor, autor de quadrinhos da história. Quem se aprofunda em sua obra, rapidamente percebe quanto de estudo e pesquisa qualquer material dele é baseado, com a representação feminina não é diferente. Ele faz questão de incluir diversidade etária, física, sexual e de classe, não se limitando a apenas uma visão ou opção. Promethea, por exemplo, possui sete representações entre gordas, magras, latinas, egípcias e escravas, inclusive uma encarnada por um homem gay.
Fora das obras já citadas, é importante falar rapidamente sobre uma das produções mais polêmicas do escritor: Lost Girls (1991). Um material do gênero erótico que teve suas críticas mais efusivas por utilizar e subverter personagens de histórias infantil como Alice, Wendy e Dorothy. Ainda assim, fica claro o cuidado que Moore emprega na representação feminina. A parceria com uma desenhista mulher, a pluralidade e o roteiro extremamente bem desenvolvido fazem a gente se perguntar por que os quadrinhos eróticos ainda insistem em ser apenas Manaras, Jodorowskys e Druunas.
Dizer que toda obra de Moore é baseada em estupros e objetificação de mulheres é ser leviano. A maioria de suas hqs possui sexo, mas a mulher raramente é sexualizada. Alguns quadrinhos de super-herói com heroínas em poses ginecológicas e sem proporções baseadas na realidade é muito mais ofensivo do que um excelente roteiro com protagonistas mulheres reais enfrentando dificuldades com as quais podemos nos identificar.