ANÁLISE: O mundo dos esports e a perpetuação do assédio.

Você chega em casa após um dia de trabalho. Você abandona suas ferramentas após o home office. Você tira um tempo para descansar dos estudos— ao abandonar seus deveres, pensa que merece um descanso. Sua mente também concorda com isso, e assim, decide fugir para o mundo dos games. Ou, para quem gosta, decide acompanhar o mundo dos esports. Acontece que você não é qualquer uma… Você é uma mulher. A vítima perfeita para os homens do outro lado do país, ou planeta, colocarem para fora raivas e sentimentos ruins que não pertencem à mulher. Mas aguentamos, enfrentamos isso por conta de um argumento bem simples: costume. E outro nada simples: medo. 

O objetivo dos jogos deveria ser tornar seus usuários pessoas melhores, mais descontraídas, afinal de contas, mentes imaginativas podem agir de melhor maneira do que o “costume caseiro”. Mas nada disso acontece. Toda mulher que já jogou tem uma experiência ruim para dividir. Seja uma micro agressão, ou um assédio explícito, na frente dos demais componentes do grupo que nada fazem. Afinal de contas, é online, o que pode nos afetar? Em tudo. 

Já dizia Manuel Castells em seu livro “O Poder da Identidade”, que existem diversas formas de existir. E às mulheres é negada uma identidade virtual sem que isso as exponha ao perigo. E essa não é a única maneira de proibir a existência feminina no universo outrora 3D e agora evoluindo: não há espaço seguro para jogadoras, representantes de marcas, ou simples fãs. Quando você visita uma plataforma digital qualquer, por exemplo, vai sempre encontrar as mesmas recheadas com imagens de homens profissionais em sua área. 

Para mulheres, resta a criação de ligas específicas separadas por gênero; e todos sabemos que a grande maioria de tais iniciativas acontecem apenas depois de uma grande polêmica ou por esforço interno das participantes. Um exemplo: em 2021, teremos cinco jogadoras distribuídas pela CBLOL. Isso acontece depois de uma série de polêmicas envolvendo players e escândalos que envolvem até mesmo troca de imagens com meninas abaixo dos 16 anos. Se é uma jogada de marketing para desviar a atenção?

Bom, aí cabe ao leitor decidir. Serão cinco mulheres inscritas nos 10 times da franquia brasileira, “YATZU” (INTZ), “Lawi” (Cruzeiro), “Liz” (LOUD), “Ari” (Cruzeiro) e “Harumi” (Henzga). Harumi é a primeira mulher participante do circuito oficial de LOL no Brasil. A Instituição do CBLOL nunca teve essa quantidade de mulheres participando do circuito. Gabi, a única mulher do time Rensga, deu entrevista ao Globo Esporte, onde afirma:

Minha meta é melhorar no jogo, em si, para alcançar meus objetivos. Então eu quero, realmente, entrar no time, ser titular de um time, não só reserva […] Minha entrada foi basicamente para isso, para inspirar outras organizações a contratar meninas, a colocar meninas para jogar. Eu recebo muitas mensagens de gente falando como foi importante, como é legal ver outra menina chegando aonde eu cheguei.”

O depoimento de Gabriela é importante porque demonstra o costume em colocar mulheres no banco de reserva, além do latente desejo para que outras mulheres sintam-se à vontade para participar do cenário gamer. Contudo, isso não é uma tarefa muito fácil. Ainda esse ano, na primeira semana de 2021, ouvimos diversas denúncias correndo soltas pelo twitter e outras redes sociais. A repercussão foi tamanha que ganhou destaque nos principais sites de esports do país. 

De acordo com um levantamento feito pela TECHTUDO, cerca de 74% dos jogadores nos Estados Unidos já sofreram algum tipo de assédio. Entre as formas de abuso, 65% relataram cenas absurdas, como stalking e ameaças de morte. Na mesma pesquisa, 25% apontaram que sofreram abuso por conta de ideologias como a supremacia branca. Os jogos mais citados em níveis de toxicidade foram: Overwatch, Dota 2, PUBG (Player’s Unknown’s Battleground). League of Legends (LOL) e Counter-Strike Global Offensive (CS:GO). Rainbow Six e Fortnite também aparecem na lista dos jogos mais difíceis de aturar o ambiente de toxicidade. 

Quanto ao Brasil, não temos um quadro muito melhor. Esse ano, Daniela Li fez uma denúncia acerca de uma situação abusiva provocada por “MiT”, da Riot Games. Como punição, o caster ficará de fora das transmissões em 2021. “MiT” já treinou a paiN Gaming e a Flamengo Esports. Lembrando que essa não foi a única denúncia contra ele, no entanto, a primeira que fez efeito; o próprio divulgou uma nota pedindo desculpas à vítima. Alerta para trigger: MiT forçou sexo oral em Daniela, que o avisou diversas vezes que não queria nada daquilo. 

Daniela ainda fez um depoimento:

“As sequelas que eu tenho disso vão ficar comigo a vida toda – meus choros, minhas crises de ansiedade, minhas insônias, [meu] medo de sair sozinha com outra pessoa quando conheço alguém, entre outros (…) se isso [o relato] impedir que algo assim aconteça com outra mulher pela mão desse cara, eu vou ficar um grãozinho mais leve”, completou Daniela.”

E as denúncias não pararam por aí: outros jogadores da cena brasileira foram expostos por seu comportamento predatório. Vejamos, “penec” (CS:GO), “tinowns” (LOL), “kake” (LOL), “FNX” (CS:GO) e “mav” (Rainbow Six: Siege).  Bom, “kake” e “pancc” foram denunciados por trocar imagens sensuais com garotas entre 15 e 17 anos; enquanto ambos são adultos. O treinador “kake” foi denunciado por exigir nudes dos rapazes a quem treinava. 

Por enquanto, os nomes proeminentes que sofreram punições foram MiT, Kake, pancc e mav (todos eles pediram desculpas públicas, uma forma de admissão). Curioso que um ambiente tão venenoso com mulheres seja dominado por elas. De acordo com uma pesquisa da ONG Anti-Defamation League constatou que 53,8% dos jogadores brasileiros são mulheres; o que não impede de 37% dessas mulheres sofreram humilhações e assédios durante os jogos. 

Podemos considerar isso um padrão? Sim. Mas um padrão estrutural, onde a sociedade patriarcal continua proliferando o machismo em todos os ambientes onde convivem, ignorando a capacidade, competência e merecimento das mulheres. Nada que não exista na “vida real”, que aos poucos, migrou para o universo virtual. Os jogadores acham que estão cansados da realidade… Mas apenas migraram seus preconceitos para um mundo diferente, protegidos pelo anonimato, pela distância, e pela falta de legislação apropriada aos assédios sofridos. 

Você também pode gostar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *