O abandono é um tema universal. Existem diversas obras que retratam o abandono, a solidão, o medo de estar sozinho. Hoje, trouxe isso ligado à dois contextos que tem um ponto em comum: a solidão da mulher. Para isso, analisarei as obras de Elena Ferrante do diretor André Novais Oliveira. Do Brasil à Itália, encontramos subjetividades que abordam uma mulher que tem que enfrentar o vazio. O só.
Ferrante e a solidão da mulher pós abandono do marido
A primeira obra que iremos analisar é Dias de Abandono, da autora Elena Ferrante. Ferrante é conhecida por colocar em palavras a subjetividade feminina, e é uma das minhas autoras favoritas. Não só em Dias de Abandono mas em toda sua obra podemos encontrar a discussão sobre a solidão feminina, mas trouxe esse por ser o mais explícito, levando até no seu título a palavra abandono.
A história acompanha Olga, que após 15 anos de casamento, é abandonada pelo marido, Mario. Deixada com o cachorro Otto e seus 2 filhos, Gianni e Illaria, embarca em uma jornada de se redescobrir após se perder no casamento. Seu medo é que se torne como a pobre coitada, mulher de sua infância napolitana que após abandono do marido, se perde completamente ao ponto de não ter mais nome, sendo apenas a pobre coitada.
Podemos analisar essa obra a partir de vários pontos de vista. Mas irei focar aqui na dicotomia de abandono e libertação. Ferrante deixa claro que, para Olga, no momento em que ela casou ela perdeu sua individualidade, seus gostos. Tinha uma carreira, mas sua carreira virou o marido e os filhos. Como uma mulher assim se manteria igual após o abandono do marido? 15 anos de casamento foram apagados com um simples discurso de Mario, que disse que aquilo não fazia sentido mais. A partir dessa solidão, a protagonista entra em uma série de atos de autodestruição, perde a noção de realidade e começa a alucinar inclusive com a pobre coitada, personagem que perde o nome após o abandono do marido, afinal, sua característica é apenas essa e nada mais: ela foi abandonada. Esse é o maior medo de Olga, mas ela descobre na sua espiral que muito antes de ser abandonada ela já estava perdida nas entrelinhas do marido, era definida por ele e não como Olga. E no momento em que Mario diz que não quer mais, ele toma uma decisão unilateral de falar que ela não pertence mais à ele, ela perde essa definição e vira completamente vazia. É desesperador. Por fim, evitando spoilers, o mais interessante desse livro é justamente isso: esse vazio, esse desespero, essa descoberta de que ela não era mais ela por muito tempo é justamente o que a liberta e a permite se (re)definir.
Dias de Abandono pode ser encontrado para compra aqui. Mas pode ser que tenha na sua livraria local também! Dá uma olhada 🙂
A solidão da mulher negra
Enquanto em Dias de Abandono encontramos a solidão da mulher mais velha, abandonada pelo marido, o filme Temporada do diretor André Novais Oliveira, longa vencedor do Festival de Cinema de Brasília, foca na solidão da mulher negra. Com o protagonismo de Grace Passô, o longa acompanha Juliana, que se muda para Contagem (MG) para trabalhar como agente pública de endemias como a dengue. O filme é um filme que dialoga com todos. O que me fez amar esse filme é que, diferente do que estamos acostumados nos filmes mainstream, é um filme que não acontece absolutamente nada de especial.
É um filme em que nós somos colocados como uma pessoa acompanhando a vida de Juliana no seu cotidiano de acordar, trabalhar, ir para uma festa com os amigos… é o cotidiano. E nesse longa é retratado a essência do dia a dia e ponto final. E em suas entrelinhas, demonstra a solidão de uma mulher negra que, sozinha (afinal, saiu de sua cidade para outra desconhecida) começa a criar laços. No longa, apesar de não ser o central da história, encontramos temáticas como machismo, racismo. Isso acontece porque, inevitavelmente, na vida de uma mulher negra ela irá encontrar com isso de forma natural. O machismo, racismo, etc. não possuem um alarde ou anúncio prévio: eles existem na vida e ponto final. O mais interessante é que, assim como há um marco em Dias de Abandono, em Temporada há uma cena em que a personagem muda o cabelo, e isso é um marco para sua nova fase da vida, sua libertação. A atriz Grace Passô afirma que isso é porque, para a mulher negra, o cabelo é um signo das transformações mais ferozes da imagem (…) uma construção histórica de posicionamento e resistência.
Temporada é um marco justamente por, na sutileza e silêncio do cotidiano, nos relembrar que diariamente existem mulheres existindo e resistindo, relembrar que tudo na vida é político, que cada sutileza é importante. E o abandono de Juliana tem o ápice na sua libertação.
Temporada (2020) está disponível na Netflix. Confira o trailer aqui.