ANÁLISE | O Conto da Aia – A June Osborne que Existe em Todas Nós

June Osborne vive – em um contexto horrendo e hiperbólico – o que mulheres vivem de fato todos os dias, o dia todo.

Devo dizer que estava aguardando – ansiosamente – o término da quarta temporada de Handmaid’s Tale (O Conto da Aia, inspirada no livro homônimo escrito pela inglesa Margaret Atwood) para falar sobre June Osborne (maravilhosamente interpretada por Elisabeth Moss).

E agora, alguns vários dias após o season finale ter sido veiculado, preciso falar sobre June Osborne.

Antes de me aprofundar no tema, permita que eu faça uma breve e resumida ambientação a respeito da série para que estejamos todos alinhados quanto ao assunto.

Gilead é sobre homens e a instauração de um inquestionável poder.

Em um mundo em que as taxas de fertilidade caem sem parar, o governo totalitário da República de Gilead (uma teonomia cristã) toma posse – não de forma pacífica, vale a ressalva – do que um dia foi o território dos Estados Unidos da América.

Nesta nova configuração social imposta (goela abaixo) às pessoas que ali residiam, as mulheres passam a ser violentamente subjugadas e perdem o direito de trabalhar, possuir bens, desenvolver suas finanças (que também deixaram de existir) e de ler. Além de outros tão graves quanto os citados.

As mulheres férteis passaram a ser chamadas de aias (handmaids), e, para tanto, foram recrutadas e alocadas, cada uma delas, nas casas dos comandantes e de suas esposas (representantes da elite social do Estado), onde eram submetidas a estupros ritualizados cujo objetivo era unicamente gerar bebês para as famílias (e, claro, para a sociedade de Gilead como um todo).

O QUE NOS APROXIMA TANTO DA REALIDADE DISTÓPICA NA QUAL VIVE JUNE OSBORNE?

Não quero enviesar o texto deixando-o alinhado apenas com minha ótica de mundo, então, talvez, a única resposta prudente a ser dada à questão acima seja: o fato de sermos mulheres.

June vive – em um contexto horrendo e hiperbólico – o que mulheres vivem de fato todos os dias, o dia todo.

Deixe-me exemplificar.

Em Gilead, o estupro é normalizado.

É uma prática comum e recorrente.

E de que forma isto se relaciona com o mundo em que vivemos?“, você me pergunta.

Em 2020, a cada oito minutos uma mulher foi violentada sexualmente no Brasil (sabe-se, porém, que o número de casos é muito maior do que os registrados nas delegacias, e, portanto, divulgados nas estatísticas). Ou seja, se eu me estender mais do que o planejado na escrita deste texto, a leitura deste post ocorrerá de forma simultânea a pelo menos mais um crime sexual praticado no país.

As circunstâncias, sim, são muito diferentes – tendo em vista que no estado teocrático cristão militar a prática do estupro é legalizada e incentivada pelo governo –, mas, de alguma forma, a história fictícia, redigida em meados da década de 80, ainda apresenta tristes semelhanças com a atualidade.

June Osborne luta, basicamente, por seu direito de ser mãe de sua filha.

E quantas mulheres também não lutam pelo mesmo direito hoje em dia? Ou direitos semelhantes?

Pelo direito de exercerem a maternidade (OU NÃO!) considerando a situação de vida delas.

Nos primeiros seis meses de 2020, por exemplo, o número de mulheres atendidas em todo o país pelo SUS em razão de abortos malsucedidos – provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei. No mesmo período, foram mais de 80 mil curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto – vale mencionar que os dois procedimentos citados são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada e não espontânea.

O controle do corpo feminino permanece. De Gilead para cá ou daqui para Gilead – não sei qual seria a metáfora mais adequada para esta análise.

A República de Gilead trata os homossexuais como traidores de gêneros.

O que significa que relacionamentos homoafetivos são considerados crimes por serem contra as leis da natureza e contra a manutenção da espécie, e portanto, a execução é (uma das) pena(s) para quem é pego cometendo a transgressão.

Infelizmente a violência pautada em convicções homofóbicas  não ocupa somente as telas e as demais ficções. Em 2020, 237 brasileiros membros da comunidade LGBTQIA+ foram vítimas da homotransfobia. Destas pessoas, para fazer o paralelo com a vida das aias em Gilead, acho importante ressaltar que 10 eram lésbicas.

No universo da série, a opressão severa contra homossexuais é dolorosamente ilustrada através das situações vividas pela personagem Emily, que, além de sofrer mutilação genital como punição do Estado após denúncia por estar envolvida em um romance homoafetivo, fora também obrigada a assistir o enforcamento de sua parceira.

Ou seja, Gilead e o mundo real, cada qual fazendo uso de suas características particulares, contribuem para a disseminação de uma crença fundamentada nos ideais da heterossexualidade compulsória.

Às aias foram fornecidos uniformes idênticos, enquanto nós estamos vestidas com nossos cotidianos próprios. Em ambos os cenários, a ameaça e a exposição se fazem presentes – em diversos níveis e através dos mais variados formatos.

Se Gilead é aqui e agora, creio que somos todas Junes. Ao menos, digo, todas temos um pouco de June Osborne. Mas também somos Janines, Moiras, Ritas (etc.). E a isto se soma o fato de que também somos Serenas e Tias Lydias. Somos todas elas, que estão aprisionadas naquela sociedade bizarra, e somos todas nós, aprisionadas nesta.

Como grande admiradora da série, só me vejo capaz de encerrar este texto parafraseando em tradução livre uma das diversas reflexões incríveis de June Osborne:  “Eles não deveriam nunca ter nos dado uniformes se não quisessem que nos tornássemos um exército”.

E bem sabemos que é isto, não é?

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