RESENHA: Notas de Um Filho Nativo, James Baldwin

Título: Notas de um filho nativo. Editora: Companhia das Letras. Tradução de Paulo Henriques Britto.

”Se escrevo tanto sobre a condição do negro, não é por achar que não tenho assunto, mas só porque foi esse o portão que me vi obrigado a destrancar para que pudesse escrever sobre qualquer outra coisa.” – James Baldwin

Antes mesmo de começarem os ensaios, em uma Nota Autobiográfica, Baldwin deixa claro a atmosfera que o livro irá percorrer. Como bem colocou Langston Hughes em sua resenha da obra (1958), Baldwin escreve para ninguém, e ele está buscando ferozmente escrever para si mesmo. 

Foi meu primeiro contato com a escrita de Baldwin. Assisti o filme inspirado em sua obra Se a Rua Beale Falasse, uma história de amor belíssima e simples, que no entanto deixa claro tudo que é tirado dos negros, inclusive o direito de viver essa simples história de amor por causa do racismo. Me lembrou algo que Rafael Casal disse sobre seu filme com Daveed Diggs, Blindspotting: é uma comédia entre amigos em um mundo que não deixa os negros em paz.

Enfim, após assistir Rua Beale, fiquei curiosa para ler algo de Baldwin, mas não tinha tido a oportunidade. Então agora apareceu. E acredito que foi a melhor oportunidade possível começar a leitura do autor por meio de seus ensaios, que explicitam suas visões de mundo e fala sobre sua escrita. Enquanto lia sentia que queria conhecer mais de suas obras. E quando terminei, o sentimento de quero mais continuou.

Sobre a obra

O livro, lançado em 1955, reune ensaios escritos entre as décadas de 1940 e 1950 é a primeira obra de não ficção do autor de O quarto de Giovanni. Dividido em 3 partes, a primeira foca no artista negro, na literatura negra e nos ”romances de protesto”. Já o segundo trecho foca em um aspecto mais auto biográfico e sua relação turbulenta com o pai, David Balwin, cheia de mágoas e palavras não ditas. Finalmente, a terceira parte vai abordar a condição do negro americano fora dos Estados Unidos, focando especificamente em Paris, onde Baldwin se exilou não para ”ir para Paris, mas para sair de Nova York”, e uma aldeia Suíça.

Parte I

Diferente da celebração que recebe hoje, Baldwin foi um nome controverso no movimento negro em sua época. Muitos os criticavam e o acusavam de self-hate, entre outras coisas. Havia a crítica de que nunca falava em nós, apenas por si, mesmo tendo sido colocado como porta voz do movimento negro, afinal, na era de Martin Luther King e Malcom X o autor estava escrevendo sobre a condição do negro na América. Tais críticas não afetaram Baldwin, que sofreu duros ataques inclusive com cunho extremamente homofóbicos. O autor diz que a condição de porta voz ”presume estar falando por outros e eu nunca presumi isso, nunca presumi que pudesse fazer isso”.

De qualquer forma, a primeira parte do livro foca em analisar dois romances completamente diferentes, a Cabana do Pai Tomás e Filho Nativo, ambos romances que abordam a questão do negro (de formas completamente opostas), além do filme Carmen Jones.

A cabana do pai Tomás é o livro mais vendido dos EUA logo após a Bíblia, e foi uma obra importante no contexto de abolição da escravidão. Hoje é uma obra extremamente criticada, e Baldwin dá a sua opinião ao dizer ser ”bem semelhante ao zelo daqueles missionários alabastrinos que vão à África para cobrir a nudez dos nativos e empurrá-los para os braços pálidos de Jesus”. Conhecendo o contexto entre o feminismo liberal e a abolição da escravatura, não sei se podemos negar a fala de Baldwin. Por outro lado, analisa os acertos e limitações da obra de Richard Wright – que inclusive possui um filme com o mesmo nome, e o filme Carmen Jones, analisando a questão do estereótipo do negro promíscuo.

Enfim, gostaria de me aprofundar, mas o espaço é limitado. Finalizo dizendo que as analises sobre as obras são feitas de forma extremamente madura e numa perspectiva de observador, mas não isento.

Parte II

A segunda parte é extremamente dolorosa. Foi a parte que li com um aperto no peito. Aqui, começamos com o cenário do Harlem, conhecemos a infância de Baldwin e sua relação com o pai, David. O ensaio sobre a morte do pai me causou tanta, mas tanta dor, e não posso deixar de imaginar o sofrimento que Baldwin derramou nessas páginas – escrever é uma forma de sangrar, como bem colocou Conceição Evaristo. Compreender todo ressentimento que o pai possuía é doloroso, e se reconhecer nesse mesmo lugar de ressentimento, uma dívida de pai para filho, é ainda mais doloroso.

James Baldwin em 1972 SOPHIE BASSOULS/SYGMA VIA GETTY IMAGES

aprendi que ser negro significa, precisamente, ser alguém que nunca é olhado, porém está sempre à mercê dos reflexos causados nas outras pessoas pela cor de sua pele. (p.119)

Parte III

A parte final aborda Baldwin fora dos Estados Unidos. Como ele diz, precisava fugir da América, precisava do exílio, e partiu, como muitos de seus mestres e inspirações, para Paris. A cidade retratada por Hemingway de forma tão bonita em Paris é Uma Festa, nos olhos de Baldwin.

Paris, reza a lenda, é a cidade onde todo mundo perde a cabeça e a decência, vive pelo menos uma histoire d’amour, quase nunca chega a lugar nenhum na hora certa e debocha dos puritanos – a cidade, em suma, onde todos se embriagam com aquele admirável ar de liberdade. (p.154)

De fato, Paris é uma festa. No entanto, aqui encontramos também um dos ensaios que particularmente mais me marcaram. Além da discussão sobre identidade e pertencimento, a diferença entre o Africano da África e o Americano, encontramos o ensaio Liberdade em paris. Sim, como colocado acima, há um ar de liberdade em Paris. Mas há outro lado até mesmo na belíssima Paris a ausência da liberdade que o próprio Baldwin enfrentou por – acreditem ou não – ter sido acusado de tráfico de lençóis. Nesse ensaio, encontramos uma Paris não tão mágica. O Natal atrás das celas.

Além disso, encontramos um ensaio que seria quase cômico – na realidade, eu acredito que se não soubesse que é ficcional, ia achar que saiu de uma sátira um pouco dolorosa. Um Estranho na Aldeia acompanha os dias de Baldwin em uma pequena aldeia Suíça que nunca encontrou um negro. Para Baldwin, estadunidense, foi um choque absurdo descobrir que existia um lugar no mundo em que as pessoas simplesmente não conhecem a existência do negro, e faz um paralelo dos nativos encontrando os colonizadores, um ensaio sobre supremacia branca, etc.

Por fim, a edição da Companhia das Letras conta com análises da obra e um perfil biográfico do autor, que certamente me ajudaram a compreender o contexto que aquelas palavras foram escritas. Um livro sensacional de um autor que, acima de tudo, queria ser honesto. Uma obra, perdoem a repetição, honesta, cheia de contradições que são, como falamos anteriormente, características de alguém que escreve não para o outro, mas para sangrar e se entender. Finalizando com Hughes, Baldwin utiliza palavras como o mar usa ondas, para o fluxo e a batida, avançar e recuar, subir e fazer uma reverência no desaparecimento. Livro sensacional!

Eu sou o que o tempo, a circunstância e a história fizeram de mim, certamente; mas sou também muito mais que isso. Eu e todos nós. – James Baldwin

Você pode encontrar este e outros livros de James Baldwin aqui.

 

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