Crítica | Não! Não Olhe! é o terror primoroso de Jordan Peele para a história do cinema

Na atualidade, temos poucos diretores que sabem trabalhar em filmes que demandam de uma narrativa bem contada, envolvente, profunda e trazendo críticas complexas ao redor de gêneros que muitas vezes são mais para divertir o espectador do que para se pensar, como os filmes de Star Wars por exemplo – que pelo seu título se trata muito mais de política atual do que uma simples luta fantasiosa de sabres de luz entre o bem e o mal.

Nomes como Martin Scorsese, Steven Spielberg, Spike Lee e até o falecido Alfred Hitchcock são de grande influência para diretores atuais pelas suas técnicas de filmagem, a retratação de críticas sociais e racionais, além da própria referência dos gêneros. Jordan Peele é um desses novos diretores, roteiristas e produtores que encaixa nas descrições acima. Algo que deveria ser recorrente no cinema americano, mas que apenas no Oscar 2018 isso infelizmente aconteceu, Jordan Peele acabou fazendo história sendo o primeiro cineasta negro da história a ser indicado nas três funções por Corra!. Quais seriam os futuros trabalhos daquele ator que acabou se aventurando na direção e tendo bastante destaque na crítica? Os holofotes começaram a aparecer ao seu redor.

E daí vieram os filmes como Corra! e Nós que Peele trouxe aos público uma nova faceta de filmes de terror com a inserção de críticas sociais e raciais – sendo muito bem elogiado por essas duas obras em que atuou não só como diretor, mas como roteirista e produtor. Então, depois de três anos veio Não! Não Olhe! sendo o resultado final primoroso da junção dos grandes trabalhos dele, contando com homenagens a esses grandes diretores da história do cinema.

A trama de Não! Não Olhe! se passa nos arredores de Los Angeles, no árido e sinuoso Vale de Santa Clarita, no sul da Califórnia, onde situa-se o rancho que os irmãos OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer) herdaram de seu pai, o criador e domador de cavalos lendário na indústria cinematográfica, Otis Haywood Sr. (Keith David). Eles querem manter o rancho e dar continuidade ao ofício do pai, porém, testemunham uma descoberta estranha e assustadora que pode mudar suas vidas.

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Logo no início do filme quando os créditos iniciais começam a aparecer, Peele já provoca um certo desconforto e tensão com um cubículo se aproximando da tela junto a um filtro bem escuro e uma trilha sonora bem metálica. A partir daí, você já percebe que o filme já é bem diferente de Corra! e Nós e a assinatura de terror do mesmo. Logo a seguir, temos outra cena um tanto inusitada: um set de filmagem de uma sitcom dos anos 90 vazio, com pessoas caídas e um chimpanzé grunhindo e todo ensanguentando, o que dá a entender que o animal “feroz” possa ter sido responsável pelo massacre. Adiante, damos início ao cenário atual em que o filme se passa.

O que você pode ter acabado de ler possa fazer sentido nenhum, com cenas totalmente desconexas umas das outras. Até poderia ser, se não estivéssemos tratando de um filme de Jordan Peele. Não! Não Olhe! é um filme interessante, instigante, tenso, complexo, cheio de simbolismos e crítico, o que não surpreende vindo de Peele – e isso é ótimo.

Aqui o roteiro bem trabalhado em nada se diferencia dos outros trabalhos, pelo contrário, aprimora. Por ser um filme de diversos gêneros (terror, suspense, comédia, ficção científica e um faroeste), Peele consegue utilizar elementos de cada um na narrativa e criando uma confusão e ao mesmo tempo uma logicidade nela. Há um certo ponto da narrativa que tudo se entrelaça e te faz ficar mais instigado em como Jordan Peele conseguiu unir o possível e o impossível na obra.

Sendo sua primeira obra de ficção científica para os cinemas, Peele não aproveitou esse tema de “outro mundo” apenas pelo óbvio, mas fez dele o ponto de partida para várias interpretações subentendidas para o público ter seus questionamentos.

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No título original Não! Não Olhe! fica NOPE e o que pouca gente sabe é que essa palavra, a princípio, poderia ser um acrônimo de “Not of Planet Earth” ou “Not Our Planet Earth” (em tradução livre “Não é do planeta Terra” ou “Não é do nosso planeta Terra”), referenciando aos OVNIs, porém Peele revelou mais tarde que o título se refere à reação que ele esperava provocar do público. Depois que você assiste ao filme, você entende que é exatamente isso. Nos materiais de divulgação temos um OVNI pairando, mas o tema principal vai muito além do que esperamos que seja.

O filme é separado em capítulos que fazem referência aos nomes dos cavalos (ex: Fantasma, Sortudo) do rancho da família Haywood. Porém esses cavalos não são quaisquer um: são cavalos treinados para aparecerem em produções hollywoodianas e estão sendo cuidados nesse rancho pelos irmãos OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer). Emerald é a voz por toda a publicidade dos cavalos e sempre traz a história da família, mencionando serem descendentes diretos de Alistair E. Haywood, o cowboy que apareceu nas primeiras imagens de fotografias usadas para criar um filme. Em um momento de cuidado com um dos cavalos e a energia elétrica desligando por alguns segundos, os irmãos Haywood percebem que estão sendo vigiados através da presença de um OVNI. O ritmo do filme muda, com os irmãos tentando capturar a evidência daquela ameaça com a ajuda do técnico de informática Angel (Brandon Perea) e um documentarista cult (Michael Wincott).  O quadro do Se Vira nos 30 do antigo Domingão do Faustão nunca fez tão sentido.

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A referência do quadro não é pelo tempo, mas sim perante ao espetáculo: de que naquele curto tempo, você tem que mostrar todo o seu talento para que o público tenha simpatizado com o que você tenha mostrado. Quanto mais “original e interessante” for, mais a simpatia é conquistada.

Em entrevista ao IndieWire, Jordan Peele disse: “Eu escrevi em uma época em que estávamos um pouco preocupados com o futuro do cinema. Então, a primeira coisa que eu sabia é que queria criar um espetáculo… a grande história americana de OVNIs.” O que ele não mentiu, já que quando falamos de OVNIs, há uma certa ceticidade em torno do assunto e quando há uma aparição, surge a necessidade de autenticar, documentar aquilo.

O primeiro dos questionamentos que Jordan traz é o espetáculo. O anseio que nós temos por ter que provar o desconhecido, sempre querendo documentar alguma experiência e expô-las ao mundo e tratando de OVNIs, a curiosidade está sempre ligada a qualquer assunto relacionado a esse tema, como algo “pioneiro” e que possa tirar proveito daquela $ituação. Jordan soube trazer essa crítica, em que não é necessário transformar tudo em espetáculo, principalmente quando você não sabe com quem ou o que está lidando, sendo perigoso ou não. Como o de transformar uma tragédia em um espetáculo, encaixando com a cena inicial sobre o chimpanzé todo ensanguentado no set de uma sitcom.

“(…) em menos de uma hora, suas vidas irão mudar. Estamos sendo vigiados por uma espécie de alienígena que chamo de espectadores (…)”

Essas frases vem de Jude (Steven Yeun), dono do parque temático Jupiter’s Claim que explora uma certa história para sair no lucro e onde ele apresenta um show ao vivo todo roteirizado com platéia, o “Star Lasso Experience” (Experiência do Laço Intergaláctico em tradução livre), uma experiência de outro mundo que utiliza cavalos para atrair e controlar o tal OVNI. Tais cavalos são da família Haywood, que por problemas financeiros da falta de oportunidade no mercado cinematográfico, obriga a OJ (Daniel) a vendê-los para Jude.

Outro questionamento que Peele traz é sobre você querer estar no controle das pessoas ou de domar animais, seja domésticos ou selvagens. Mesmo que você não desista de domar, precisa ter o conhecimento necessário para tal e saber o que está fazendo, que talvez consiga domá-lo.

Nope: Jordan Peele's Perfect Summer Movie | National Review“algumas feras nasceram para não serem domadas”

dois elementos específicos no filme que mostram esse questionamento, com cenas tanto fantasiosas ou mais próximas da realidade. Será um tema muito discutido pela suas diversas interpretações que o público poderá ter – e pasmem, quanto mais você reflete, outras interpretações vem à tona. Ao mesmo tempo que Jordan traz sobre controle ou domínio de seres, há espaço para saúde mental, principalmente tratando de gatilhos que, por mínimo possível, pode te levar a uma situação inesperada e fora de controle, por não saber lidar ou não com o que aconteceu. Por isso a importância do cuidado com a nossa saúde mental e também pelo respeito com animais, sem levá-los a momentos de estresse a níveis de exposição, por exemplo.

In Jordan Peele's Gripping Get Out, “Humanity Is the Monster ...“A humanidade é o monstro em meus filmes”, disse Jordan Peele à Vanity Fair em 2017.

Em entrevista ao Upright Citizens Brigade Theatre, Jordan Peele disse “Não consigo me ver escalando um cara branco para o papel principal em nenhum dos meus filmes. Não é que eu não goste de caras brancos, eu só sinto que já vi esse filme antes” e esse ponto é perceptível logo de cara no filme: o protagonismo negro.

Não só pela escalação de Daniel Kaluuya e Keke Palmer como protagonistas, mas todo o enredo dos seus personagens indo desde a função de cada um na narrativa indo até a história da família, Jordan Peele fez o que chamamos de “reparação histórica”. Alistair E. Haywood, bisavô dos protagonistas, não existe na vida real. É uma criação do diretor e ressignificando a história do cinema sob a perspectiva de que as cenas de movimento dos filmes vieram de um homem negro.

Ao mesmo tempo que o diretor trata desse ressignificado da criação do cinema americano hollywoodiano, ele traz a alusão de que a presença negra foi sempre subestimada pelos brancos, onde os créditos sempre saem para eles. Não havia apoio moral e nem financeiro a respeito.

‘Nope’ de Jordan Peele ganha primeiro trailer bizarro: assista“Gostamos de dizer que desde que as imagens passaram a se mover, nós tínhamos pele em jogo” diz Emerald na apresentação sobre o rancho da família para os contratantes do set.

Mostrar que OJ Haywood, personagem do Daniel, um cara mais reservado, sempre calado e falando apenas quando é essencial, além de ficar à mercê de bater de frente com os brancos – você acaba percebendo isso por uma cena, através do seu comportamento, pelo seu olhar. Falando em olhar, pode-se relacionar com vigilância da comunidade negra enfrentando na sociedade pelo racismo e tratando de Estados Unidos, isso é mais do que claro (vide o caso de brutalidade contra George Floyd). Fora a questão da responsabilidade de OJ em manter o legado do pai em cuidar do rancho, já que aquele lugar fazia parte da história da família. Além da alusão da falta de espaço da comunidade negra, também foi mostrado bem sorrateiramente, a presença feminina no entorno familiar e também em seu protagonismo.

Emerald Haywood, personagem da Keke Palmer, tem uma personalidade totalmente contrária do irmão: mais livre, vívida, mais espontânea por ter tido mais “vivência” do mundo afora e busca fama e fortuna em Hollywood. Infelizmente, o pai, pelo seu papel de patriarca, não deixava com que ela tivesse a oportunidade de domar o próprio cavalo, o Jean Jacket, mas que no final acabou domando outro tipo de fera, maior, mais perigosa e desconhecida.

Sobre a atuação e os personagens: não preciso nem falar sobre a atuação de todos os protagonistas. Durante as 2h15 temos um ótimo elenco com Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Steven Yeun, Brandon Perea, Michael Wincott e a participação do renomado Keith David. Vemos atuações cativantes e viciantes, a ponto de querer acompanhar todos os personagens ao mesmo tempo.

Como já mencionado, Não! Não Olhe! é um filme utiliza elementos dos gêneros de terror, suspense, comédia, faroeste, ficção científica – com referências à anime (!). Sim, Jordan Peele conseguiu ter esse mix super bem feito desses gêneros totalmente contraditórios.

Em diversas entrevistas antes do lançamento do filme, Jordan citava King Kong e Jurassic Park serviram como fontes de inspiração para a questão das pessoas serem atraídas por espetáculos. Sinais e Contatos Imediatos do Terceiro Grau também serviram de filmes que o influenciaram, principalmente nos gêneros de ficção científica, terror e suspense tendo como fator comum OVNI, símbolo mais conhecido do gênero.

Jordan Peele Talks About The AKIRA-Inspired Motorcycle Shot in His New Film NOPE — GeekTyrant

Os animes Akira e Neon Genesis Evangelion também tiveram referências colocadas por aqui. O deslizamento de moto Kaneda, que no caso feito por Emerald (Keke) sob uma moto branca e sob fitas policiais quebradas (masterpiece) ou a referência dos Anjos de Evangelion visualmente feita em alguns personagens e relacionando até com passagens bíblicas. Exemplo dos Anjos aqui

Por ter como cenário um rancho de cavalos treinados para trabalhar em produções hollywoodianas, o gênero de faroeste se destaca não só por isso, mas pelo enquadramento dos personagens, o filtro amarelado e o próprio símbolo: cavalo. Há um pôster do filme Buck and the Preacher (1972) na decoração da casa dos Haywood, filme de faroeste onde os protagonistas são negros e também o primeiro filme que Peele havia visto com cowboys negros como protagonistas.

Outro aspecto bem simbólico dos cavalos nesse filme são da representação no aspecto de suas cores. Quando pensamos na representação das cores branca e preta, associamos a “paz” e a “morte”, refletindo no audiovisual. Mas e se invertêssemos? O branco ser a morte e a preta ser a paz? Pois é nessa tacada que Não! Não Olhe! se diferencia de outras produções. Falando assim pode ser um mero detalhe, mas ao assistir o filme você vê o contexto: da escolha do cavalo Fantasma ser um cavalo branco e o primeiro a ser morto; e com o Sortudo, um cavalo preto que termina como um herói, com a paz reinando. Jordan Peele ressignificando símbolos, isso é semiótica.

A comédia fica por conta da Emerald (Keke Palmer), com doses de humor orgânicas e que acabam deixando um bom respiro depois de cenas tão tensas que vimos e ouvimos (!). Keke Palmer simplesmente engolia todas as cenas que aparecia, com carisma e sua presença.

The Ending Of Nope Explained

Mas o que Jordan Peele é mestre, são nos gêneros de terror e suspense. Não! Não Olhe! é um filme bem tenso, viu? Peele utiliza de elementos presentes no dia-a-dia que poderiam passar despercebidos, mas que no entorno do enredo, dão um toque a mais na sua importância. A nuvem mostrada nos materiais de divulgação é um deles, por exemplo. Você nunca mais vai olhar para o céu da mesma forma, mesmo.

Tanto linguagem visual quanto sonora, o diretor consegue imprimir o suspense junto ao terror em um resultado prendendo a atenção do espectador do início ao fim. O filme inteiro foi filmado com câmeras IMAX, então a qualidade visual e sonora é bem acima do convencional.

Elementos contorcidos, sangue, planos gerais, enquadramentos, a fotografia, a paleta de cores frias em momentos de mistério e quentes para demonstrar emoções intensas como alegria, paixão e violência. Tudo isso pelo olhar do diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema junto à direção de Jordan Peele.

Já por parte da sonoridade, foi o compositor Miguel Abels responsável pela trilha sonora agoniante e metalizada do filme. Porém o artifício que mais te deixa com arrepios na espinha são a edição e mixagem de som. É indiscutível ter uma crítica negativa sobre esses dois requisitos técnicos.

Chegando na conclusão, podemos dizer que sim, Não! Não Olhe! é o melhor filme do ano e digo isso com cem por cento de certeza. Autêntico, tenso, divertido, complexo e primoroso, Jordan Peele te leva a uma história que não é nem de longe de outro mundo e muito mais próxima do que você possa imaginar.

O que vale a pena ser visto e ouvido, é apenas assistindo Não! Não Olhe! na maior tela de cinema, que valerá super a pena – deixando-lhe inclusive tão desacreditado a ponto de não querer olhar as cenas (mas olhe!). Aproveita que o filme estreia nessa quinta-feira (24) para estar antenada nas discussões!

Você vai ouvir falar mais de Jordan Peele por aí, com menção honrosa à Keke Palmer. Só esperamos que o “ouvir” seja pelos elogios e prêmios que irão receber e não pela subestimação.

Nota: ☁️☁️☁️☁️☁️

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