Olá! Eu e a Edriene, do Filhas de Hala, produzimos um texto conjunto – um manifesto, quase – sobre feminismo e inclusão. Espero que curtam! As informações têm como embasamento teórico: MULHERES, RAÇA E CLASSE (ANGELA DAVIS) e FEMINISMO PARA OS 99%, UM MANIFESTO, ambos da editora Boitempo, disponíveis no site da editora.
Entre os séculos XIX e começo do XX aconteceu a primeira onda do movimento que viria a ser chamado de feminismo, movimento o qual em sua definição mais popular busca a igualdade política, social e econômica dos sexos. As ondas do feminismo são separadas perante às necessidades e reivindicações do movimento em cada período, e na primeira onda, as reivindicações eram o direito ao voto, trabalho e participação na política. Entretanto, nesse mesmo período, a escravidão ainda existia em diversos países, sendo um deles o Brasil. Apenas mulheres brancas e suas reivindicações estavam sendo incluídas no feminismo pois mulheres negras, indígenas e árabes e outras ainda não viviam na condição de ser humano.
Sendo assim, a despeito da luta inglesa do sufrágio feminino ser considerada a primeira luta das mulheres por direitos como o voto e trabalho, já existiam mulheres trabalhando e sendo oprimidas pelo sistema capitalista, o que tornou a luta feminista algo extremamente fragmentado e seletivo, tendo em vista que não fazia o recorte de classe e raça. Mulheres brancas ricas estavam pedindo para trabalhar, mas tudo isso só se tornaria possível por conta da reprodução do sistema colonial em que a senhora explora uma mulher negra, como por exemplo a ama de leite, e têm garantias para trabalhar. O feminismo portanto se torna elitista, e um feminismo que pisa em mulheres minoritárias.
Nos Estados Unidos, as demandas do feminismo surgiram em conjunto a abolição, muitas mulheres como Angelina e Sarah Grimké
foram porta voz do abolicionismo negro e buscando unir as lutas entre negros e mulheres em busca de emancipação para ambos. Porém, após a abolição, muitos negros continuavam em condições subumanas e mais de mil pessoas negras em um ano foram mortos por gangues racistas que existiam em todo o país, devido a isso militantes negros como Frederick Douglass, em sua mais alta inocência, acreditava que o direito das pessoas negras ao voto era prioritário devido às condições e os ataques que os mesmos recebiam, em seu apelo Douglass afirmou:
“Quando as mulheres, por serem mulheres, forem arrastadas para fora de casa e enforcadas nos postes de iluminação; quando suas crianças forem arrancadas de seus braços e seu crânio for estralhaçado na calçada; quando elas forem alvo de insultos e atrocidades o tempo todo; quando correrem o risco de ter o teto sobre sua cabeça incendiado; quando suas filhas e filhos não puderem frequentar a escola então elas terão [a mesma] urgência em poder votar.”
Com medo que os negros conseguissem o direito ao voto antes que as mulheres, grande parte das feministas se uniram a racistas e supremacistas brancos, como Henry Ward Beecher em busca da priorização da mulher sobre ao voto sobre o pensamento de que os negros, ao conseguirem o direito ao voto, iriam se tornar superiores a elas e que “era melhor ser escrava de um homem branco instruído que de um negro ignorante e infame” como nas palavras da feminista Elizabeth Cady Stanton.
Na virada do século, com surgimento do sufrágio feminino nos Estados Unidos, o racismo crescia no país assim como o movimento sufragista, a luta das mulheres étnicas ainda era deixada de lado pelas feministas brancas e elas estavam longe de estarem inclusas na emancipação das mulheres. Susan B. Anthony sempre tinha admirado o trabalho do Abolicionista negro Frederick Douglass que também foi o primeiro homem a se levantar em prol dos direitos das mulheres e participava de diversas convenções como porta voz das mesmas, passou a ser deixado de segundo lado por Anthony na tentativa de atrair mulheres [supremacistas] brancas do sul, no trecho a seguir contém um diálogo entre Ida B. Wells e Susan B. Anthony que aconteceu em 1894. A capitulação autodeclarada de Anthony ao racismo “motivada pela conveniência”:
Em nossas convenções [ …] ele era o convidado de honra que se sentava à nossa mesa e falava nas nossas assembleias. Mas, quando a [ …] Associação Sufragista foi para Atlanta, Geórgia, sabendo qual era o s entimento do Sul em relação à participação de pessoas negr as em igualdade com as brancas, eu mesma pedi ao sr .Douglass para não comparecer. Eu não queria submetê-lo à humilhação, e não queria que nada se colocasse no caminho que traria as mulheres brancas do Sul à nossa associação sufragista .
O comportamento apresentado por Anthony, não foi mantido apenas em Atlanta ou só em relação a homens negros, ela e as outras diversas feministas também deliberadamente rejeitaram a inclusão de mulheres negras dentro do sufrágio com medo de perder o apoio de mulheres brancas racistas no sul, assim então, reafirmando a supremacia branca delas, e além disso, as uniões com homens supremacistas brancos, o qual buscavam na emancipação do sufrágio a inferiorização do direito das pessoas negras que continuavam a ser mortas por gangues e perdendo seus poucos direitos em medida que as leis Jim Crow eram criadas.
Em todas as ondas do feminismo houveram mulheres negras determinadas a se colocarem do lado de mulheres brancas e lutarem pelos seus próprios direitos, uma delas foi a ex-escrava Sorjourner Truth com seu discurso épico conhecido como “Eu não sou uma mulher?” e diversas outras pelo mundo todo. No Brasil, a emancipação de mulheres e do povo negro foi ainda mais complicada devido a abolição extremamente tardia, sendo o último país a abolir. Entretanto, nos anos 80 surgiu ao redor do mundo o “Feminismo negro”, também conhecido como a terceira onda que buscava a interseccionalidade de mulheres através do feminismo onde mulheres negras, e posteriormente mulheres indígenas, asiáticas e mulheres queer moldaram pautas e se inseriram no contexto da luta feminista. Assim, o feminismo começou sua luta por uma maior união e inclusão, sem pisar em outras mulheres como “escada” para seu empoderamento.
Porém, como vivemos em um sistema movido pelo capital, mais uma vez o sistema se apropriou dessa luta. Assim, o feminismo inclusivo foi recebido de braços abertos pelo capital, até como forma de vender para um público maior. Camisas como THIS IS WHAT A FEMINIST LOOKS
LIKE (é assim que aparenta uma feminista) começaram a serem vendidas mostrando a suposta diversidade de pessoas que abraçam a causa, porém, novamente, empresas que vendem essa camiseta são empresas que abusam do trabalho escravo de mulheres pobres em países da periferia do capitalismo, com uma enorme população pobre, negra e sem acesso à nenhuma dessas lutas “empoderadoras”. A suposta revolução na luta feminista mais uma vez se tornou uma marca para grandes corporações utilizarem como símbolo e vender estampas que custam às vezes a vida de mulheres. Além disso, empresas abraçam o feminismo negro mas seguem demitindo ou não sequer contratam mulheres negras para trabalhar em sua empresa. Um exemplo perfeito, tratando das empresas supostamente abraçarem causas mas apenas de fachada é o caso do gerente do Itaú que foi demitido por ser homossexual.
Assim, fica o questionamento. Como é possível haver a inclusão total das mulheres se sempre ficamos retornando, infelizmente, para a opressão de minorias que são sempre invisibilizadas? A resposta, de acordo com o livro FEMINISMO PARA OS 99%, é exatamente o título do livro. Um feminismo que não seja apenas pautado em “liderança feminina”. Para quem prega essa liderança feminina, a realidade é a igualdade de opressão. Mulheres brancas e ricas oprimindo tanto quanto homens brancos. O feminismo deve ser, acima de tudo, pró LGBT, antirracista, anti neo liberal, etc. Não existe neutralidade política, e o feminismo como um movimento independente se tornaria exatamente isso, produzindo mulheres privilegiadas tão opressoras quanto. Um bom exemplo disso é a Margareth Thatcher. Thatcher, por algumas, é tratada como um ícone, uma mulher poderosa em situação de poder. Porém, para os trabalhadores, Thatcher era um monstro. Sem me aprofundar, o ponto é o seguinte, parafraseando o livro: Não queremos mulheres como CEOs poderosas. Queremos o fim de CEO poderosos e opressores. Queremos um mundo mais igualitário e o feminismo deve abraçar isso.
Agora, algumas pautas da interseccionalidade do feminismo.
Recorte de classe:
O recorte de classe vai muito além de entender que pessoas que compõe a classe proletária enfrenta mais dificuldades que os que ocupam as classes mais altas, é também reconhecer as dificuldades que cercam essas pessoas no acesso à informação. Nossa sociedade é estruturalmente racista, machista e LGBTfobica, pessoas são ensinadas desde a infância a terem pensamentos preconceituosos, alguns conseguem se desconstruir e melhorar de atitude, porém, essa desconstrução ainda é um privilégio de classe tendo em vista que a população mais pobre ainda não possui ou não sabe utilizar os artifícios necessários para essa desconstrução, devido a deficiência no sistema educativo e onde dificilmente movimentos sociais chegam a eles. Diante disso, numa situação relativa a pessoas sem informação que reproduzem comentários de cunho preconceituosos, antes de tudo, é necessário que busque a melhora e transformação dessa pessoa oferecendo as informações necessárias ensinando-as a utilizá-las para que a partir da informação ela consiga desconstruir os pensamentos enraizados.
Fragilidade da mulher branca:
Diferente da mulher negra, a mulher branca sempre teve seus estereótipos voltados a fragilidade e pureza, tal estereótipo foi bastante usado nos Estados Unidos na tentativa de mostrar homens negros como bestas estupradoras de pobres mulheres brancas, mas não é sobre isso que texto irá tratar. E sim da constante posição da mulher branca como vítima ou frágil que a impede de se responsabilizar pelas suas próprias ações. Tal atitude reforça o estereótipo bem comum de que mulheres negras aguentam e mulheres brancas não, que resultam em atitudes como mulheres negras recebem menos anestesias em parto porque elas conseguem aguentar a dor, independe se a situação delas sejam mais graves, enquanto a mulher branca simplesmente não. Em 1902, a autora de um artigo intitulado “A Nine-Hour Day for Domestic Servants ” [Jornada de nove horas diárias para serviçais domésticas] relata uma conversa que teve com uma amiga feminista que lhe pediu que assinasse uma petição destinada a pressionar empregadores a fornecer cadeiras para as balconistas’.
“As moças”, ela disse, “têm de ficar de pé dez horas por dia, e me dói o coração ver o cansaço no rosto delas .”
“Sra. Jones ”, eu disse, “quantas horas por dia sua empregada fica de pé? ”
“Por quê? Eu não sei”, ela ofegou, “cinco ou seis, creio eu.”
“A que horas ela se levanta? ”
“Às seis.
”“E a que horas ela termina o trabalho, à noite? ”
“Por volta das oito, acho, normalmente.”
“São catorze horas …”
“Ela pode se sentar durante o trabalho.”
“Durante qual trabalho? Lavando? Passando? Varrendo? Arrumando as camas? Cozinhando? Lavando a louça? [ …] Talvez ela se sente por duas hor as, nas refeições e quando prepara os vegetais , e quatro dias por semana ela tem uma hora livre à tarde. Sendo assim, sua empregada fica de pé pelo menos onze hor as por dia, incluindo o agravante de ter de subir escadas. O caso dela me parece mais digno de compaixão do que o da balconista da loja.”
Minha visitante se levantou, corada e com faíscas nos olhos.
“Minha empregadas sempre tem livres os domingos depois do jantar”, ela disse.’
“Sim, mas a balconista tem todo o domingo livre. Por favor, não vá antes que eu assine a petição. Ninguém ficaria mais grata do que eu em ver que as balconistas têm a possibilidade de se sentar [ …] .”
Tal conversa exemplifica a dificuldade que a mulher branca tem em se reconhecer como opressora em um sistema racista ou se enxergar além dos próprios traumas e dores, as mulheres brancas simplesmente foram colocadas por tanto tempo em uma posição de coitadinha que não conseguem sair dela, a situação é constante quando é apontado racismo em suas atitudes ou fala e o resultado disso é sempre “Como você pode me acusar se ser racista?” e em seguida, vem um discurso de salvadora branca de como ela constantemente ajuda pessoas negras e é incapaz de cometer um ato racista mesmo tendo sido socializada como opressora em uma sociedade que é. Esse estereótipo vem como contrapeso ao mito da agressividade da mulher negra, onde em várias situações onde mulheres brancas se comportam como monstros em relação a mulheres negras, que a acabam devolvendo na mesma moeda, sempre há a culpabilidade de mulheres negras por não ter sido didática ou gentil com aquela pobre mulher branca a qual não pensou duas vezes antes de destratá-las, enquanto isso, ignora o que fez mulheres negras passarem pois estão “acostumadas” a lidar com o ódio. É necessário que mulheres brancas revejam o tempo todo suas atitudes relativas a isso porque é algo tão sutil que pode passar imperceptível, tentar ver as coisas na perspectiva de outras pessoas e tentar enxergar que existem problemas além do seu é importante, tentar ser auto crítica as suas próprias atitudes e entender que mulheres negras não podem ser culpabilizadas pela forma de reagir a uma opressão é essencial.
Reconhecer a relação de mulheres racializadas com seus respectivos homens:
Para um feminismo antirracista, antes de tudo, é necessário entender que mulheres racializadas tem relações diferentes com seus respectivos homens que as mulheres brancas têm com o homem branco. A luta de mulheres indígenas e negras é ancestral, eles lutavam lado a lado antes de indígenas e negros serem considerados pessoas e antes de indígenas e negras serem consideradas mulheres. Muitas etnias indígenas e africanas eram matriarcais, e mesmo depois da colonização, homens e mulheres indígenas/negros enfrentavam as mesmas opressões, a mesma violência e aguentavam a escravidão e todos os seus abusos da mesma forma que os homens, com exceção dos estupros que não servia apenas para diminuir e conter a grande força das mulheres, e também funcionavam como uma lavagem étnica com o objetivo de extinguir as respectivas raças através do estupro e da miscigenação. Com o passar dos anos, os homens indígenas e negros foram obrigados a se inserir na sociedade e passaram a ser socializados sobre a falsa sensação em equipara-se, mas sem qualquer privilégio que os mesmos usufruem. É necessário reconhecer que as mulheres indígenas/negras precisam de seus respectivos homens pois as mesmas possuem ou podem possuir irmãos, primos e filhos que precisam de um exemplo positivo de homem indígena/negro, além disso, é necessário lembrar que homens negros e indígenas foram reconhecidos como pessoas a menos de 200 anos, portanto, chamar homens indígenas e negros de macho ou tentar inferiorizá-los de outra forma tratando como se fossem homens brancos é racista e só vai separar as mulheres indígenas e negras do movimento.
Segregação
Nas poucas vezes que o feminismo negro é abordado nas redes sociais, mulheres brancas tendem a acusar-las de segregação sobre a desculpa de “somos todos mulheres”, entretanto, devido ao histórico do movimento, mulheres brancas foram as responsáveis por segregar mulheres negras, indígenas, árabes, filipinas e outras do movimento feminista as colocando em uma posição de não-mulher. E a segregação continua até hoje com a falta de recorte, exclusão de pautas raciais dentro do feminismo e com o constante negação do privilégio branco vindo das mulheres brancas. É necessário que as mulheres brancas compreendam que mulheres têm diferentes experiências e lidam com o machismo de forma diferente, e que as mulheres brancas, que criaram do feminismo um movimento racista e segregador, que desconstruam o racismo e classismo presente movimento, o qual foi criado por elas, para que o feminismo se torne de fato um movimento que busque pela equidade de gênero e não pelo direito da mulher cis branca se igualar ao homem branco.
Esperamos que esse texto tenha cumprido seu objetivo de explicar de forma à inicar o debate, principalmente entre mulheres brancas, se seu feminismo está sendo inclusivo. E recomendamos bastante a leitura dos textos citados.